Dedos de Prosa III

Anderson Fonseca

 

Desenho: Re

O pequeno estava com fome, muita fome. Havia dias que não comia nem bebia. A boca era o deserto com rachaduras nas extremidades, de algumas emanavam fios de sangue. Mas o pequeno não chorava. Não gemia. Emudecido fechara-se num ovo. O sol castigara suas costas. O ovo rachou. As cascas uma a uma caíram. O pequeno lembrava um feto mal formado. Um urubu o viu e bicou seus olhos, depois seu estômago, depois chamou os outros que fizeram o mesmo. O que restou? O desenho do pequeno na terra.

***

 

À beira de um edifício, em pé, uma menina olha o horizonte. Atrás dela, alguém diz: – Você vai pular?

– Não.

– Seu pai pulou, sua mãe e seu irmão também. Você vai pular?

– Não.

– Olhe para trás.

Ela olhou e viu uma multidão enfileirada.

– Eles aguardam a vez.

Um velho lá do fundo gritou: – Pule menina!

– Não posso. Não quero perder a visão do horizonte.

A voz então lhe disse ao pé do ouvido: – Feche os olhos. É igual.

E a empurrou.

***

 

 

A garotinha estava brincando com o urso e um gatinho de pelúcia. Os dois bichinhos dialogavam.

– Como foi seu dia? – perguntou o urso.

– Foi bom, muito bom. – respondeu o gatinho.

– Me conte o que aconteceu. – suplicou o urso.

– Eu estava passando em meio aos escombros dos prédios, quando vi um buquê de flores. Elas começavam a murchar. Corri para pegar ao menos uma rosa e cheirá-la. Assim que me aproximei, agachei, estendi a mão. Mas era difícil puxá-la, algo a segurava com muita força. Então fiz força também para arrancá-la. Dei tudo de mim, até que a rosa veio, mas um líquido vermelho escorria do caule, um líquido espesso. Abaixei para ver de onde veio a rosa. Olhei através dos escombros. Uma mulher tinha os punhos cerrados em torno do buquê. Era um sinal de amor que a bomba tornou em morte. E como foi o seu?

 – Ontem à noite… – disse o urso. – Sai à procura de uma estrela cadente. Ouvi dizer que elas realizam nosso desejo. Basta olhar para elas e pedir. Eu estava com sorte. Depois que me sentei em cima de uma pedra e levantei os olhos, dezenas de estrelas atravessaram o céu. E aí eu sussurrei, “Quero estar ao lado de um amigo, porque sozinho é difícil superar o mal da guerra”. E agora estou com você.

Ao lado da garotinha dormiam seus pais.

 

***

 

 

– O que você fez com suas mãos? – perguntou o soldado à menina.

– Folheava um livro.

– Livro? Diga o nome.

As mãos dela estavam sobre a mesa.

– O sol é para todos.

– Repita.

– O sol é para todos.

– Diga mais uma vez.

– O sol é… – antes de terminar a frase, o soldado desceu a lâmina sobre as mãos dela.

– O sol é dos que o conquistam. – encerrou o soldado.

***

 

 

Quando Omran acordou, viu que as cinzas ainda estavam sobre ele. Quando tocou a própria face, sentiu-a manchada de sangue. Quando perguntou sobre seus pais, não ouviu resposta. Quando o silêncio cortou o ar, uma lágrima desceu.

Anderson Fonseca, 35 anos, é autor dos livros de contos “Sr. Bergier & outras histórias” e “O que eu disse ao general” – o primeiro de uma trilogia sobre a guerra e a política. Os contos aqui publicados fazem parte do seu próximo livro, “Crianças deitadas jamais se levantam”, obra que é a segunda da trilogia.

 

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