Dedos de Prosa III

Caio Russo

 

Foto: Antonio Paim

 

Diário

6h07 e o calor da manhã sorri irônico da tarde que virá tostada numa frigideira de asfalto.
Essa completa ausência de brisa fotografa o que poderia ser um álbum familiar da década de 30, pai sentado, mãe empertigada com a mão sobre o ombro do patriarca, três filhos em pé ao redor aguardando nervosos o estrondo e o cheiro de pólvora da câmera primitiva que lascará uma parte de suas almas infantis, exatamente como confidenciou o tio Sérgio entre sussurros no almoço passado, quando soube do retrato parental.
ental.

6h22, daqui três minutos o Sr. Maurício do pet-shop destrancará a porta da frente e sairá para comprar o pão matinal.
Não, ele não se atrasa, é neurótico como eu, o hábito funciona, é a batida sintomática de uma estaca, a parte final do longa metragem em que o casal acaba junto, mas se separam assim que termina os 96 minutos de filme, tenho certeza.

 

6h26, é provável que o Sr. Maurício do pet-shop tenha tido um enfarte enquanto descia as escadas, talvez esteja agora mesmo agonizando numa tentativa ridícula de chamar a esposa que só acorda às 10h04 por conta dos 6 mg de rivotril.
Posso ver daqui aquela mão estufada, dedos cilíndricos usando os últimos minutos de uma medíocre existência para abrir a maçaneta do portão da garagem e o suor faz deslizar, deslizar, e os nervos frágeis não permitem que a mão feche, segure, mantenha.
Quem sabe não está arrependido, “por que não cortei a gordura da picanha?” “por que a cerveja todo dia e não só nos finais de semana?” “arroz na banha de porco”.
Foi tarde, é sempre tarde para soltar a mordaça do cotidiano, gritar o próprio nome não escolhido nunca.

6h40 e é o tédio.
Não, Baudelaire e seus párias não sabem o que é o tédio, só conheceram a melancolia. O tédio foi anunciado no XIX, mas demorou 153 anos para ser parido.
A maioria é preguiçosa e só.
Nem melancólica, nem entediada.
Tédio? É preguiça fermentada, envelhecida em barril de carvalho, ausência de ausências, o verdadeiro contentamento imóvel, homens

6h45, olha lá, é o Sr. Maurício do pet-shop, atrasado para o pão matinal. Hoje o dia começou incomum, fora de esquadro.
Esse tom sépia da tua pele não engana, são os ventrículos pedindo ajuda, a icterícia do fígado estampada no andar desritmado.
feito pedras por debaixo de lagos pausados.

 

7h00, não foi hoje, mas tudo bem.
Eu aguardo.

 

Caio Russo é escritor, melômano, estranho como as imagens num desenho de Alfred Kubin. Autor dos livros “Delicado desespero de beija-flor em voo” (Chiado, 2015), “Vaga queda” (Benfazeja, 2016).  

 

 

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