Matheus Arcaro
Até que a morte os separe
Cláudio chega arrastando os olhos pelo chão. Sequer quando abre a porta do restaurante eles se opõem à gravidade. Carrega sobre as pálpebras anos de frustração. Na língua, as palavras deitadas pela covardia conferem um sabor sórdido às possibilidades não cultivadas. Por que demorei tanto? Ele precisa de uma resposta para alvejar a boca. Porém, as respostas claras não existem na natureza, são construídas por mentes que necessitam de algo estável. O acre da boca se intensifica quando pensa que a estabilidade da ponte entre Clarice e ele era apenas aparente. Por não atravessá-la com frequência, só via a regularidade do pavimento; não percebia a estrutura se corroendo sob os gestos e sorrisos complacentes.
Os primeiros tempos de casamento não deixaram a expectativa acima dos fatos. Mas não demorou muito, as cores começaram a desbotar e, quando ele tentou colorir o relacionamento, faltaram-lhe os dotes de artista. Fez um borrão que foi se extenuando até restar uma camada praticamente imperceptível que, de certo modo, sustentou o laço fraterno entre eles. Era avesso a traições, respeitava Clarice. E estava seguro da reciprocidade desse sentimento. Só não foi capaz de sentir que para o amor sobreviver é preciso uma dose mínima de desrespeito.
Quinta-feira, como se cumprisse uma obrigação herdada, ele estava sobre a esposa. Copiaria os mesmos movimentos das semanas anteriores se não sentisse o peito umedecer e ouvisse a voz entrecortada, o que estamos fazendo, Cláudio? Ele também começou a chorar. Os dois rostos se colaram e misturaram-se as lágrimas de anos. Na manhã seguinte, ele não acordou em sua cama. Antes de sair, insistiu para que se encontrassem dali a uma semana, onde tudo começou. Com um gesto emprestado, Clarice moveu lentamente a cabeça para cima e para baixo.
Cláudio sabe onde a esposa está sentada. No entanto não é por isso que não ergue os olhos; é porque sente medo de vê-la segura, asco de encontrá-la sustentada por si. Em verdade, sente-se como o suicida minutos antes de apertar o gatilho. A iminência da perda, mesmo daquilo que ele acredita abdicar, faz transbordar no peito uma sensação escura, espalhando o instinto de conservação por todo o organismo: as mãos estão molhadas, a boca seca, as orelhas quentes e os calafrios sobem e descem pela coluna.
Quando, enfim, levanta a cabeça, as narinas se expandem. Com o vestido florido, Clarice parece costurada ao ambiente, criação de um artífice desatento que colocara naquele salão sombrio uma escultura delicada. Os olhos dela escondem-se e mostram-se conforme o vento tira para dançar a mecha de cabelos cor de mel. A pele branca, que não se curvou ao tempo, exala maciez e um sabor de futuro chega aos lábios do homem. Clarice não parece a mulher que na semana anterior repugnara-o na cama, mas a menina que estivera sentada ali dezessete anos antes.
Talvez por isso as pernas de Cláudio não se entendam entre si. Há somente cinco mesas ocupadas, contudo é como se o restaurante estivesse cheio de olhos voltados para ele. O homem não está preparado para conversar com uma menina, muito menos com a sua menina.
A cada passo, Cláudio tenta pinçar os fatos que poderiam salvar o relacionamento; refaz o percurso até chegar à tarde de primavera em que vira Clarice pela primeira vez, naquela mesma mesa. Mas não consegue preencher os pensamentos e o vazio é invadido por um homem que acaricia as mãos da sua esposa. Um homem que olha nos olhos dela e para quem Clarice consegue sorrir com algo mais do que a boca. Cláudio agita as mãos como a criança que se recusa a compartilhar o brinquedo que desaprendera a usar. Clarice é minha. Só minha, ouviu bem?
A ideia da esposa com outro o carrega para o banheiro. O que devo dizer? O discurso ensaiado não parece verossímil. Molha a testa como se pudesse inchar os pensamentos com persuasão, entretanto, diferentemente dos seus anseios, a água traz a imagem de um velho nu, deitado em posição fetal no centro da cama redonda. Só há a cama branca no quarto enorme. Ele invoca o nome de Clarice, atravessa as madrugadas por gritá-la até as costelas engolirem o abdômen, mas só ouve o eco da própria voz. Entra no banheiro um senhor que cumprimenta Cláudio com um movimento de cabeça. Ele retribui o sinal. O velho começa a gesticular, emitir grunhidos e apontar para a saída. Cláudio se desespera, foge do mudo e encosta sem ar na porta. Porém, não pode escapar da certeza de que nada do que falar para Clarice mudará o que está decidido. Uma decisão que vem sendo enrijecida ao longo dos últimos anos e que palavra alguma terá o poder de perfurar. É tarde demais: a aproximação da verdade traz o negrume aos seus olhos.
Como se chegasse ao matadouro, Cláudio se aproxima da mesa. Adormecida dentro de si, Clarice continua girando o canudo enfiado no suco de morango não sorvido, mesmo enquanto ele se senta. Um silêncio rígido perdura por longos segundos até que ele pede uma cerveja ao garçom, que prontamente o atende. A cerveja desce agarrada à garganta como se não quisesse fazer parte daquele corpo vencido. Os olhos de Cláudio percorrem o restaurante: o que vê não se assemelha ao conteúdo entalhado na memória. Tudo agora é áspero demais, esnobe demais. Ele, então, fixa a vista em Clarice como se desejasse prender aquele instante na superfície dos olhos, ciente que nunca mais ele seria seu. Procura em si palavras não nascidas, revira o vocabulário, mas nada de substancial desce à língua.
– As paredes não eram assim tão escuras…
– Acho que não.
Trocam ainda umas frases sem tonalidade. Cláudio se dá conta do que Clarice sabia antes de se sentar ali: as palavras são desnecessárias nos velórios. Ainda mais nos velórios tardios.
***
Condenado à liberdade
“Terei que correr o sagrado risco do acaso.
E substituirei o destino pela probabilidade.”
(Clarice Lispector, A paixão segundo GH)
Estou aqui há oito dias e alguns meses. Quantos meses? Não sei ao certo. Até a semana passada o calendário não passava de mais uma invenção vencida. O que sei é que estou nesta cela há tempo insuficiente. Está me ouvindo, Pagu? Parece mais peluda hoje, as patas maiores. Patas peludas e firmes, feitas para caminhar pelo teto, de onde você me vê como sou e não como parecia ser. Antes de me atirarem neste cubículo eu estava pronto, homem modelar. Sabia o que tinha que fazer. E fazia. E refazia. Usava o livre-arbítrio para alcançar a verdade que esperavam de um homem alto, 38 anos, cabelos grisalhos, chefe de família, empresário. Eu era. Até me enfiarem aqui. Só que eles se enganaram, Pagu. Todos eles. Ao me isolarem na solitária, não me privaram da liberdade. Privaram-me do que acreditam ser a liberdade, no que igualmente eu acreditava. Mas foi só aqui que conheci a verdadeira face da liberdade meses atrás: a chuva lavava os telhados; embora a cela estivesse tomada pelo hálito da penumbra, da minha cama vi a gota reluzindo no teto: as lágrimas começaram a desabrochar da alta fenda e despedaçaram-se no chão. Comecei também a chorar. Não somente porque fora educado a repetir, desta vez era diferente. O pranto, sem o soluço da dor, acordou o sorriso que há tempos não visitava meu rosto. A goteira ficou espessa, eu precisava entrar naquela torrente. Arranquei o macacão encardido, as meias, a cueca e corri para misturar minhas lágrimas com as do teto. E da água, antes translúcida, brotou uma espécie de corrente, mas cujo desenho, já não mais aquoso, foi aos poucos tomando a forma de… uma mulher! E como era maravilhosa. Linda o suficiente para um encantamento que me afogou numa emoção sem precedentes. Uma mulher de olhos ruivos. Quem é você? Sem dizer uma palavra, ela puxou minha pele, que facilmente se descolou da carne, feito estas paredes que você conhece tão bem. Depois, os músculos e os órgãos dissolveram-se com seu sopro: em instantes, eu era duas retinas suspensas e um coração pululando. Você não viu isso, não é mesmo? Acho que sequer era nascida. Pela primeira vez na vida eu era imperfeito. Incompleto. A partir deste banho, virei o avesso de Deus, um ser ébrio e imberbe, sem natureza (nem divina, nem humana), que não passa de criação! Lá fora, eu fora criado, avental e touca, servindo diariamente pedaços da minha vida ao destino. Ele comia, se lambuzava e, quando se dava por satisfeito, atirava os restos dentro de moldes construídos pelos Guardiões da Esperança. Só que aqui, Pagu, neste retângulo de seis metros quadrados, aprendi, como você, a arrancar do meu peito o fio sobre o qual eu passeio sem sair de mim. Mas terei que sair daqui a pouco. É o que diz na carta que o carcereiro me entregou semana passada. Envelope ocre, papel timbrado com as iniciais do doutor que conhece as vísceras da lei: “Ilmo. senhor Pedro, o pedido de soltura foi deferido; o senhor sairá em oito dias”. Eu contratei esse advogado? Para quê? Sua eficiência arremessou meu avesso à boca do desespero: à medida que os novos dias engoliam os velhos, o temor escorria do peito aos membros: as pernas estrangeiras do corpo, os braços rigidamente esticados ao longo do tronco. A lembrança de antes da solitária deixava meu futuro anestesiado. Não, não posso mais voltar a ser como aqueles senhores que caminham ao lado da vida; não suporto mais vestir a máscara que cada situação suplica; não quero mais enfiar meus sentimentos num saco sujo. Jamais imaginei que poderia arrancar as boias que me prendiam à minha superfície. Aliás, nunca cogitei a existência dessas boias. Foi somente aqui que me tornei um abismo negro, úmido e cálido por onde caio sem eriçar os pelos e, em cada centímetro, encontro os andaimes frouxos, as entranhas e as arestas que não quero mais aparar. Antes de os homens fardados me buscarem em casa naquela manhã ensolarada, eu percorria, de cabeça erguida, um caminho marcado com tinta indelével; por isso não enxergava o traçado. Aqui aprendi a dançar sobre a minha história que escrevo a lápis em páginas sem pautas, dançarino surdo carregado pelo ritmo da respiração. Aqui consegui ouvir a vida gritando em meus pulsos, consegui apanhar a eternidade em cada átimo e soltá-la para que tudo não passe de possibilidades. É, Pagu, o mundo é pequeno demais; eu só caibo nesta cela. Porém, desde que recebi aquele papel pálido, o cheiro inebriante que irrompia dos meus poros não frequenta mais minhas narinas. Naquele momento comecei a registrar os dias na pele com a ponta do canivete. Não me olhe assim. Coagido pela lei, tive que aguardar a oitava manhã e ela nasceu chorando como se compartilhasse com o meu espírito o estado agônico de quem está prestes a ser aprisionado. Ouço os passos do carcereiro marcados pelo balançar das chaves, ele está vindo abrir a cela, provavelmente com os dentes à mostra. O que farei? Permanecerei abraçado às grades implorando que me deixe aqui? Gritarei, Excelentíssimo senhor Juiz, eu me declaro culpado, sou uma ameaça à sociedade? Subornarei o diretor da cadeia? Não, nada disso funcionará. Irei, mas nem vou me despedir de você, porque darei um jeito de voltar ainda hoje. Ainda hoje.
***
Sentido
Se eu fosse uma árvore entre as árvores, gato entre os animais, a vida teria um sentido.
(Albert Camus, O Mito de Sísifo)
Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido.
Eu não: quero uma verdade inventada.
(Clarice Lispector, Água viva)
Então vai buscar um sentido pra tua vida. Vai e me deixa com meus livros incompletos e meu mundo sem parapeitos. Com meus pedaços de presente que são, ao menos, mais intensos que o teu futuro cintilante. Não tenho a pretensão de unidade, querida. Há tempos a ilusão não me lança os olhos. Eu te admiro muito, fica sabendo. Iludir-se é uma dádiva. É preciso muita coragem pra desviar assim dos fatos. Mas agarrar-se à maior lasca de madeira quando se sabe que o resgate não chegará a tempo, não faz de ti um ser sagaz. Sabes por quê? Porque tu jamais te perguntas sobre a necessidade do resgate. E eu, Samanta, não preciso ser salvo. Prefiro nadar até perder as forças.
Não quero escrever “pai” com letra maiúscula somente pra me sentir protegido. Não quero levantar a cabeça pra desviar a vista das vicissitudes da terra. Contemplar as próprias vísceras é demais pro teu estômago frágil, não é? Porém o remédio que tomas pra esvanecer a vida apenas disfarça a doença que se alastra sob a tua pele. Nunca percebeste que no dia seguinte à festa, se aceita melhor em frente ao espelho aquele que não carregou a cara de tinta? Não há como esconder o tempo, amor. Mas tu insistes em pedir silêncio às engrenagens da vida. Insistes em colocar um pedaço de felicidade na ponta da vara amarrada às costas. Onde tu queres chegar, Frederico, tu esbravejas com a boca branca. Eu te devolvo uma pergunta que fica flutuando, sem força pra atingir teus tímpanos: existe esse “onde”?
Não há nada mais difícil que convencer alguém sobre o óbvio. A imagem é tão grande à frente dos olhos que fica indiscernível; é como o peixe que jamais se dá conta de que cumpre sua sina no oceano. O que te separa de uma prostituta? As duas se entregam em troca de conforto e segurança. A diferença é que travestiram tua atividade de decência. Tu és necessária à ordem. És necessária pra manutenção do que deve ser mantido. Mas há tantas janelas, Samanta! Por que abrir apenas uma e se conformar com a penumbra? Pra que construir apartamentos quando se pode comprar um balão por bem menos?
Vou te confessar uma coisa: não é saudável engolir as lágrimas pra transmitir serenidade. Não é saudável dormir às onze horas e acordar às sete ainda com a rodela de pepino sobre os olhos. Não é saudável usar roupa social no verão. O que há de natural em rir de uma piada de mau gosto só porque o chefe a contara?
Com o mundo sobre as costas, tu te conformas com o alívio de tirar o sapato ao fim do dia. Não te passa pela cabeça que possa ter algo de sensato em eu não querer usar sapatos apertados? Que eu prefira dançar a correr? Pois, sim, prefiro dançar descalço em círculos até as pernas pedirem pausa. Dançar por dançar, tu perguntarias. E eu, sem vontade na voz, responderia: vai procurar o teu sentido.
Matheus Arcaro é professor de Filosofia, artista plástico e, principalmente, escritor. Tem dois livros publicados: um de contos, “Violeta velha e outras flores” (Patuá, 2014), e o romance “O lado imóvel do tempo” (Patuá, 2016). Tem textos publicados nos sites Mallarmargens e Germina, além de ser colunista dos portais Língua de Trapo, Educa Dois e LiteraturaBr.