Glauber da Rocha
EXU PAGÃO
Prometi que nunca mais iria ficar preso por causa de uma mulher: podia ser a Vivi Fernandez, a Mônica Mattos, a Morgana Dark ou a Fernanda Corrêa que ia cagar para ela. Foi o que decidi na prisão. E não só isto: quando saísse, iria viver uma vida honesta, sem feitiçarias, assassinatos. Mas, ao ver a boazuda da Ana Rita saindo da casa de minha mãe, não pensei duas vezes para correr atrás dela, para me enfiar em mais uma roubada em troca do amor de uma mulher.
Ela entrou em seu carrão, bati na janela, Ana Rita abriu. Olhei para seus olhos e por um instante pensei estar olhando o céu. Nunca havia visto olhos azuis tão claros como os dela, era linda mesmo, Ana Rita dava de dez a zero nas mulheres das revistas que eu vivia folheando quando estava na prisão.
– Eu faço o que você quer, é só me pagar – eu fui logo dizendo.
Ela abriu a porta e eu entrei, sentando-me no banco do passageiro.
– A sua mãe não quis fazer o trabalho para mim…
– Que trabalho?
– Matar meu esposo…
– Olha, dona, faz mais de um ano que minha mãe não faz mais este tipo de trabalho, ela fez o santo… E quem é do santo não pode fazer o mal, só o bem… Ainda mais quem é de Omolu, santo que abomina a maldade… Mas eu faço… É só pagar bem que faço! – falei olhando para as suas pernas e depois para os seus olhos.
– Interessante. Como é seu nome mesmo?
– Zeca.
– Zeca, você falou que mata meu esposo. Do que você precisa? – disse ela, arrancando com o carro.
Falei para Ana Rita tudo o que precisava.
– Quanto vai dar tudo isto?
Disse o valor e ela parou o carro perto da ponte, para preencher o cheque.
– Quantos dias, Zeca? – ela quis saber.
– Dentro de um mês no máximo ele estará morando com o diabo.
– Precisa de mais alguma coisa?
– Só o nome do infeliz e uma foto 3×4, se tiver.
Chamava-se Ramão.
Ana Rita tinha uma foto 3×4 do marido na carteira, puxou-a e me deu. Olhei para o indivíduo: era um homem branco de bigode e sobrancelhas bem pretas, olhar sério, estava de terno e gravata.
– E se ele não morrer? – Ana Rita perguntou.
– Se ele não morrer na macumba, eu mesmo o mato na paulada. Não será o primeiro…
***
Tal como minha mãe antes de fazer o santo, na segunda-feira não tinha nem para o cigarro. É o que diz a Bíblia – se tinha algo que me fazia passar o tempo na prisão era a Bíblia, a Bíblia e as revistas de mulheres peladas –: “todo presente e todo bem mal adquirido perecerão.” Isto está no livro do Eclesiástico. No livro do Eclesiástico a gente encontra todas as respostas da vida. Nele diz também: “o trabalhador dado ao vinho não se enriquecerá, e aquele que se une às prostitutas é um homem sem valor algum”. Eu era assim. Um homem sem valor algum, sempre entregue à cachaça e às prostitutas de toda estirpe.
No mês seguinte, Ana Rita apareceu. O carro dela estava todo sujo, com a lama da favela.
– Sujei todo meu carro…
– Mas não é só o carro que está sujo não, dona. Você também está…
– Onde? – disse ela, olhando para a sua roupa.
– Esqueça. Diga…
Ela me olhou nos olhos:
– O homem está mais vivo do que antes…
– Droga!
– E agora?
– Agora vou ter que fazer outro trabalho no cemitério, para um exu pagão. O problema é que acabou o dinheiro, preciso de mais algum.
Mesmo contrariada, Ana Rita me deu mais dinheiro. Fui num cemitério bem assombrado, à meia-noite. A lua estava minguante. Se você deseja acabar com a vida de uma pessoa, tem que ser nessa lua. Porque a lua estava minguante não dava para ver quase nada na minha frente. Me cuidava para não acabar tropeçando numa tumba.
Desta vez não levei um bode, só um galo preto, uísque e charutos. Fui indo. Eu precisava chegar lá no fim, onde os trabalhos são feitos. De vez em quando encontramos alguém no caminho, mas desta vez não tinha ninguém, nem o coveiro cuidando das covas. Olhei para os lados, acendi as velas e fiz o trabalho. Terminei tudo rápido e saí daquele cemitério assombrado. Depois fiquei em casa, esperando notícias de Ana Rita. Passou uma semana e ela apareceu novamente, mas desta vez irritada porque o feitiço não tinha vingado:
– O santo de seu esposo é muito forte, ele deve ser de Ogum ou de Xangô. Na macumba não vai ter jeito. Vai ter que morrer na paulada mesmo. Mas vou ter que cobrar por esse serviço…
– Vou ter que gastar mais dinheiro, Zeca?
– Sim.
– Quantos desta vez?
Falei o valor e Ana Rita concordou.
– Mas é o seguinte. Eu tenho que prestar algum serviço na casa, para bolar o melhor plano.
– Vou dispensar o jardineiro. Você entra no lugar dele, na segunda-feira.
– Ok.
Ana Rita estava indo embora quando lhe pedi um dinheiro adiantado. Ela reclamou, mas acabou me concedendo. Passei o sábado e domingo bebendo, fumando e me deitando com as prostitutas de um bordel bem fuleiro perto de casa. Na segunda-feira pedi dinheiro emprestado para minha mãe, para comprar um passe de ônibus e uma carteira de cigarros. Ela me olhou com o olhar atravessado, sabia que eu estava tramando o mal.
– Pode ficar tranquila, minha mãe, arrumei um trabalho, de jardineiro.
– Você não me engana, filho. É na cadeia que você quer passar a maior parte de sua vida?
Minha mãe tinha uma intuição extraordinária, como a maioria dos filhos e filhas de Omolu. Muitas vezes ela nem precisava abrir as cartas ou jogar os búzios para saber o que seu cliente precisava. Eu sabia se era coisa boa ou não conforme o tempo da consulta: quando o cliente queria algo mal, ela já o dispensava, quando o cliente queria algo bom, a consulta demorava. Eu sabia que Ana Rita não queria algo bom porque do mesmo jeito que entrou, saiu. É impressionante ver o quanto que a beleza não define o caráter de uma pessoa: quem iria dizer que uma mulher angelical como Ana Rita não passava de uma bandida? A beleza física é a maior das ilusões, toda ilusão é uma prisão, como eu era um sujeito que vivia iludido, vivia preso.
Cheguei sete horas da manhã na casa da Ana Rita. Casa não, uma mansão! Ela me deu o macacão de jardineiro e me mostrou a dispensa com as ferramentas de trabalho: tinha enxada, pás pequenas e pás grandes, picaretas, serrotes. Era ali também o meu canto, onde eu devia almoçar e descansar. Queria me ver trabalhando, para não levantar suspeitas. Eu odeio trabalhar, ainda mais debaixo do sol. Na cadeia recusei todos os trabalhos que diminuíssem a minha pena. Mas fazer o quê? Trato é trato e eu iria ter que trabalhar debaixo daquele sol que às sete da manhã já estava forte pra cacete.
Foi o que fiz até o meio-dia, quando Ramão chegou, em sua BMW branca. Estava vestido tal como na foto 3×4. Não suava, é claro, quem vai suar dentro de uma BMW? Ao me ver me cumprimentou, mas fez com um desinteresse próprio de quem não gosta da ralé. Me deu mais vontade de matá-lo. Fiquei pensando na origem de Ana Rita: de onde ela veio, da vida honesta ou das calçadas da vida? Por que queria matar seu esposo? Só pelo dinheiro ou por ódio?
Ramão era um político corrupto, um deputado. Um ímpio. O ímpio que pensava da seguinte maneira, com seus comparsas: “tiranizamos os justos na sua pobreza (o pobre), não poupemos as viúvas (e as mães solteiras) e não tenhamos consideração com os cabelos brancos do ancião (os aposentados)”. Ele diz: “que a nossa força seja o critério do direito, porque o fraco, na verdade, não serve para nada!”. É assim que pensa o político corrupto, era assim que certamente pensava o deputado Ramão.
Na hora do almoço Ana Rita mandou a Luana, sua cozinheira, trazer um prato de comida: seria o mesmo que foi servido em sua mesa? A cozinheira era uma mulher negra e bondosa, carregava uma corrente bem fina no pescoço, com um pingente do Cristo Crucificado. Ela era simpática, não muito bonita, mas uma mulher que pelo jeito parecia saber colocar o homem no caminho estreito, no caminho correto.
Conversamos um pouco. Gostou de conversar comigo. Toda vez que ela vinha me trazer o almoço, conversávamos. Ela me falava passagens bíblicas que eu já estava cansado de saber, contudo com um sentido diferente, com um significado diferente: enquanto eu lia procurando a lei, ela lia buscando o amor. Me envergonhei. Comecei a me interessar por Luana. Ela era um anjo que Deus havia enviado em minha vida, a melhor coisa que podia fazer era casar com uma mulher feito a Luana.
Pensando assim, veio a vontade de desistir do plano de matar Ramão, de me arrepender, de trabalhar honestamente e de devolver à Ana Rita todo o dinheiro que tomei dela. Pensei em me converter, em deixar esses exus pagãos que eu me envolvia de lado e colocar Jesus no altar da minha vida, tornar-me um justo, andar lado a lado com as entidades de luz, com os anjos e os apóstolos. Ainda dava tempo. O ladrão que foi crucificado com Jesus se arrependeu antes de morrer e Cristo o perdoou. Não sei se ele teve uma grande recompensa nos céus, mas com certeza entrou ao lado do Filho de Deus e, portanto, protegido. Era melhor fazer o mesmo. Chegar em Luana e dizer: case comigo! Foi o que fiz. Quando ela entregou o meu prato de comida lá naquela dispensa escura, eu peguei em sua mão e a pedi em casamento:
– Casamos em tua igreja, Luana, e seremos felizes, com a bênção de Deus!
– Está bem, Zeca.
Mas Ana Rita era uma mulher astuciosa e malvada. No Eclesiástico está escrito que “a mulher maldosa é como um jugo de bois desajustado; quem a possui é como aquele que pega um escorpião”. Seu esposo e eu estávamos nas mãos de um, pronto para nos ferroar sem dó. Falei com ela, disse:
– Ana Rita, não quero mais matar ninguém nesta vida. Por mais que seu marido mereça morrer, que seja pelas mãos de outro justiceiro, não eu.
Falei-lhe que iria arrumar um emprego e que iria devolver todo dinheiro que me deu, centavo por centavo. Mas Ana Rita, como disse, era uma mulher astuciosa e malvada. Disse-me que não confiava que longe dela pudesse lhe devolver o que devia, que seria mais correto de minha parte ficar e pagar com meu trabalho. Todo mês ela descontaria a metade de meu ordenado. Em três meses estava livre.
Miseravelmente, aceitei. “Toda malícia é leve, comparada com a malícia de uma mulher”, já dizia Eclesiástico e eu caí na sua malícia. No fim de um expediente, quando Ramão estava viajando, Ana Rita me ofereceu um copo de vinho. Eu teria rejeitado tranquilamente se não tivesse visto pelo decote de sua blusa seus seios brancos bem redondos e soltos, desprotegidos. Eram como maçãs suculentas.
Não resisti, esqueci meu compromisso com Luana e tomei num gole só todo o copo de vinho. Bebi outro copo cheio e mais outro. O vinho reacendeu o fogo de minhas paixões e quando vi estava na cama da pecadora. Entrei nela como um animal, virei Ana Rita de um lado, de outro, fi-la segurar firme nas barras de ferro de sua cama! Quando caí estremecido de gozo, ela pediu:
– Mata ele para mim, meu homem, mata?
– Mato sim!
Dois dias depois Ramão estava de volta. Quando deu meu horário, saí da casa deles e fiquei lá fora, esperando o telefonema de Ana Rita, me informando se Ramão já dormia. Luana saiu um pouco depois, mas não me viu, pois eu estava atrás de uma árvore. Onze da noite Ana Rita ligou. Pulei o portão da casa, fui até à dispensa, peguei uma pá e entrei na casa. Ana Rita, com uma camisola vermelha, abriu-me a porta. Ramão roncava. Cheguei perto dele e comecei a desferir os golpes com a pá.
Ele deve ter morrido na primeira, que acertei em cheio em sua cabeça. Fui para cima de Ana Rita, para beijá-la. Ana Rita não quis meu beijo, escapou dos meus braços, sacou o celular e ligou para a polícia. Tive vontade de matá-la, mas o desespero de ser preso foi maior, saí correndo. A polícia me pegou a dez quadras da casa dela. Fui preso e enquadrado no artigo 157 seguido pelo 213. Hoje, aqui na cadeia, cada vez que vejo uma de minhas revistas de mulheres peladas, faço a mesma promessa de sempre: nunca mais volto para a cadeia por causa de uma mulher! Nunca!
Glauber da Rocha é escritor e professor. Formado em filosofia e em pedagogia, com pós-graduação em educação especial inclusiva. Mora em Campo Grande, MS. Publicou “Pelas ruas de tua cidade, ó morena!” (poesias/2018) e “Crônicas Para o Face” (crônicas/ 2018). Para 2018, pretende lançar dois livros de contos: “Com os dentes que ainda me restam” e “matando anões”.
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