Julia Sereno
PARTIR
Para deixar um lugar, é preciso um pouco de coragem. Para deixar alguém, é preciso algo mais. Quando decidimos partir um laço feito de cheiros e gostos, sorrisos e lágrimas, gozo e frustração, saímos de uma estrada com placas rumo ao campo sem trilhas. Deixar alguém é deixar uma parte de mim, do meu todo e do meu nada. Deixar alguém é mergulhar no vazio, buscar o completo e nadar no incerto. Deixei muitas vezes. E me deixaram também.
***
TRAÇOS
Havia ignorado muitos detalhes na esperança de que se protegeria do susto. Mas o universo não falha em nos empurrar ladeira abaixo. Ou seria ladeira acima?
Pensou nos anos de terapia e nas horas de rascunho. Orgulhou-se da coragem de dizer chega. Envergonhou-se de não conseguir evitar o óbvio.
Vivia um dia após o outro sem abrir os envelopes. Sabia que se procurasse bem, acharia traços sem tempo definido. E não queria encontrar mais nada. Só paz.
***
NA TERRA DE PESSOA
Ladeiras que não me cansam. Caminhos que não me fogem. Descanso o medo na grama do jardim.
Acolho o novo sem perder o que era. Avisto o Tejo e ganho mais um suspiro. Brindo à Lisboa por mudar o fim.
***
TEMPOS E ESPAÇOS
Coloco-me prazos inacabados. Mantenho distância insegura. Quando não dou conta, já passei da hora e ultrapassei a linha de chegada. Muitas vezes corri. Em desespero. Pernas cansadas, mas cara lavada. Rumo ao próximo salto.
De longe avisto uma ladeira possível. Subo com passos de formiga. No topo espero uma mulher como eu. Quem é ela, afinal? O sonho que habita meu tempo derrete no espaço da cidade. Nada será como antes no meu castelo de areia.
***
FLUXO
Não conseguia esconder o arrepio na espinha. De quem decide seguir sem pedir permissão. Talvez a intuição não falhasse e a reta final fosse menos torta do que as anteriores. O antes se espalhou com o vento. As retas viraram pontilhados.
Desejava um círculo de luzes. Sem maquiagem, mas com cores. Sem roupa, mas com máscaras. Sem álcool, mas com cogumelos. O tudo a perder faria todo o sentido.
***
PARTO
Precisamos mesmo morrer para nascer de novo? Já perdi a conta de quantas vezes eu vi uma mulher diferente no espelho pela manhã. Ou mesmo antes de deitar na cama para ler a ficção sonhada ao longo do dia.
O modo como saio de casa e piso na calçada, com óculos de sol e a bolsa pesada, define a rota de desencontros nas ruas da aldeia onde moro. Uma aldeia global. Uma cidade que não me define, mas que não quero abandonar tão cedo.
A diáspora nos torna um pouco rebeldes. Depois que partimos, renascemos. E não paramos mais. Todos os dias. O choro grita a confusão do que nos espera. O colo acolhe o medo de perder. A luz de Lisboa colore o meu mapa astral.
***
DIÁRIO
Não é possível desver a luz que o tempo nos oferece. Li algo assim nas palavras de um escritor que muito admiro. Era parte de um relato de seus dias na quarentena. Dias de angústia, de raiva, de desejos reprimidos e de ausências doloridas. Confesso que, ao ler seu texto, a inspiração bateu na porta que me separa da prosa livre. Porta construída por mim. Fruto de desculpas ridículas, inventadas para escapar do que é inevitável. Uma certa melancolia sempre habitou minhas tentativas de diário. Seriam os livros de Clarice na estante?
J. me deu um beliscão no braço e aqui estou, sem filtro.
Os dias passam acelerados, envoltos em uma camada espessa de ansiedade e procrastinação. Falamos sobre a morte em uma conversa de botequim, de máscaras, mas com a cerveja gelada no copo. O barulho das sirenes não me assusta mais. Tenho vontade de comprar livros e sentar no banco da praça. Talvez com uma média de leite. Não sei mais se quero fazer o que planejei. O presente não está aceitando planos. Todos os dias uma nova ideia me convida para um chá na padaria. Por vezes não apareço. E não lamento. Virei rebelde depois dos 40. Talvez seja o ascendente em áries.
Quero passar mais tempo contando estórias para meu filho. Hoje farei arroz-doce.
***
ABRAÇO
Vou esperar um pouco mais, disse F., com medo de perdê-lo de vista. Há anos procurava um abraço que durasse para sempre. Sabia que não existia tal coisa, mas mesmo assim, continuava a buscar. O pouco não a interessava. Um dia acenou para M. na confeitaria da esquina e resolveu lhe oferecer um sorriso. Após muitos passos sem rumo pediu a eternidade do abraço. Não aconteceu. Escondeu o sorriso até a próxima primavera.
Julia Sereno nasceu em 1978 no Rio de Janeiro, mas reside em Lisboa desde 2020. É professora de inglês e português, Mestre em Estudos da Literatura e Doutoranda em Literaturas de Língua Inglesa pela UERJ. Tem poemas e minicontos publicados em revistas e em sua página no Medium.
Belos, belos…