Geraldo Lavigne de Lemos
A descoberta do infinito
Ariel e Duda tinham uma grande amizade. Nasceram na mesma data e local. Enquanto Ariel queria agitar, Duda cuidava de tudo. E era isso que fazia a amizade tão forte. Completavam-se nas diferenças. Ariel nunca abandonou Duda no tédio. Duda jamais deixou Ariel entrar em enrascada. Contudo havia algo errado. O mundo parecia estar de cabeça para baixo. Minhocas que eram, viviam na terra. Sabiam que em direção ao centro do planeta tinha pedra e, mais para dentro, tinha muita quentura, tanta que a pedra derretia. Para a direção contrária, o mundo terminava nos limites da superfície, onde a terra se limitava com o ar. Minhocas ocuparam a região subterrânea desde o início dos tempos. Porém nenhum salto de minhoca nos ares foi registrado. E isso intrigava Ariel. Talvez temessem a captura por seres que habitavam aquele espaço, como aves, humanos e toupeiras.
Certo dia, Ariel convenceu Duda a irem aos limites do mundo conhecido. Queria testar a realidade. E queria registrar aquele momento. Por isso Duda iria também. Ariel portava uma câmera fotográfica. Quando chegou à casa de Duda com o plano pronto, a primeira foto foi da sua expressão reticente:
– Tsc tsc tsc, isso não vai dar certo, disse Duda balançando a cabeça de um lado para o outro.
– Claro que vai, Duda, e lembrarão de nós por isso, respondeu Ariel categoricamente.
Os olhares se atravessaram de forma profunda. Ariel já sabia a resposta. Se isso acontecia, Duda tinha topado. Era um desafio singular e Duda sempre acompanhava Ariel em suas ideias.
– Não passaremos por essa vida à toa, afirmou Ariel.
– Mas não faço questão de escolher algo que seja perigoso, retrucou Duda enquanto caminhavam pela rua central do vilarejo.
Caminharam uma hora pelas raízes laterais, depois duas horas pela raiz pivotante, até atingirem a zona principal das raízes do Ipê-amarelo, perto do tronco, e pararam para descansar. Pegaram o lanche na mochila, a água, e confabularam o que poderia existir na atmosfera do planeta terra. Será que de fato conheciam? O que aconteceria naquela jornada? Eram dúvidas que somente seriam respondidas depois que terminassem o dia. Finalizaram a refeição e seguiram viagem. Afastaram-se uma boa distância do tronco do Ipê-amarelo e depois subiram em direção ao fim do solo. Quando atingiram a superfície, conheceram de imediato o infinito. Que visão esplêndida! O tronco do Ipê-amarelo erguia-se imenso, com a copa aberta lá no alto, tão distante, seguida de um interminável azul do céu. Enquanto contemplavam a vista sem precedentes, a brisa acariciou os seus rostos e sentiram algo realmente novo.
– Ariel, nada que eu pudesse imaginar explicaria o que sinto agora, confessou Duda.
A manifestação não demandava resposta. Sorriram e continuaram a sentir a brisa. Era um dia de verão. O tempo estava limpo, a temperatura amena. Poderiam passar dias assim, não fosse o risco desconhecido. De onde estavam, planejaram como seria o salto. Duda permaneceu no mesmo lugar e Ariel foi até a raiz mais próxima, que estava exposta fora da terra. Subir uma raiz não era como andar no subsolo. Precisava de mais equilíbrio para superar os obstáculos sem apoio, vencer a gravidade e não escorregar. Para Ariel não foi tão difícil, mas para Duda seria. Duda suava só de ver Ariel vencer cada etapa.
– Duda, existe muito mais terra do que sempre imaginamos!
A exclamação de Ariel tentava traduzir a sensação de enxergar o gramado que circundava o Ipê-amarelo, as árvores ao fundo e o desconhecido brilho da água reunida no lago próximo. Duda interrompeu seu êxtase:
– Pule logo!
Ariel atendeu à ordem. Retorceu todos os anéis de seu longilíneo corpo e saltou aos flashes de Duda. Enquanto manobrava no ar com a naturalidade inexplicável para qualquer minhoca, um pássaro mergulhou em sua direção. Queria capturar Ariel em pleno voo. Duda assustou-se, gritou, tirou fotos e correu, tudo por instinto e medo. Sentiu então algo empurrar sua cabeça contra a terra e não viu mais nada. Ariel pressentiu a tensão e olhou para trás. O pássaro se aproximava como uma flecha até que bateu uma das asas na raiz de onde Ariel saltou. Lado a lado, Ariel e o pássaro caíram sobre a grama. O pássaro se levantou, encarou Ariel e investiu com toda a velocidade, de bico aberto. Um milésimo de segundo. Nada mais do que isso. Alguém puxou Ariel para dentro do solo e o pássaro encheu o papo de terra.
– Foi por um triz, disse ainda ofegante.
– Quem é você? Perguntou Ariel abrindo os olhos.
– Eu não tinha nome. Moro por aqui desde que nasci. Certa ocasião alguém que passava me chamou de Lee e disse significar habitante do prado. Desde então eu me apresento assim.
– Muito obrigado… mesmo!
Ariel entregou o corpo, mas de imediato se ergueu e indagou:
– Você viu Duda? Estava ali adiante.
– Sim, enfiei na terra quando passei para salvar você, contou Lee sorrindo.
Lee trouxe Duda para perto de Ariel e sentaram para descansar.
– Meu coração ainda está acelerado, disse Ariel.
– Deixe-me ver, atentou Lee ao encostar no seu corpo.
Ao sentir as batidas do coração de Ariel, a expressão de Lee causou estranheza. Duda, para evitar qualquer má notícia, disparou a falar:
– Somos do Buraco de Minhoca, um vilarejo localizado na zona pilífera das raízes laterais desse Ipê-amarelo. Moramos lá, pouco depois da região metropolitana. A capital da população de minhocas do Ipê-amarelo estende-se desde a parte antiga da ocupação, na zona principal das raízes, até a parte nova, na zona lisa, onde ocorre a expansão urbana, interligadas pela raiz pivotante. Você poderia nos visitar um dia, Lee. Agora temos que ir. Temos fotos para revelar e precisamos superar o baita susto de hoje.
– Fiquem um pouco mais, respondeu Lee. Quase ninguém passa por aqui e eu gostei da companhia de vocês.
– Duda tem razão, Lee. Temos que ir. Nós devemos essa salvação a você e será um prazer enorme receber a sua visita em nossa vila. Não deixe de aparecer. Nossa comunidade é isolada e se alegra demais quando chega alguém de fora. E esperamos ter boas fotos para mostrar.
Todos se despediram. Ariel e Duda tomaram o caminho de casa e Lee permaneceu espreitando até não ver mais ninguém.
Geraldo Lavigne de Lemos sofre de poesia crônica, costuma alinhavar a alma nas memórias e se imiscuir entre as letras para expressar o que sente. Escreveu cinco livros de poesia, coorganizou uma antologia e tem no prelo uma reunião dos quatro primeiros livros. Agora se arrisca em textos curtos de prosa