Dedos de Prosa IV

Lorraine Ramos Assis

 

Foto: Almir Bindilatti

 

“Solipsismo nada analítico”

 

Uma vez um amigo disse-me que sou uma pessoa ‘’confusa e nada analítica’’.

A análise da ocasião de nossas falas, para aqueles que se proponham a exercer a função de analista informal, era de uma falha de comunicação tamanha que fazia tempo que não sentia a urgência de despersonalizar, por incrível autodepreciação que me acometeu naquele 483 irradiando suor dos trabalhadores do subúrbio.

A poltrona azul-marinho parecia regozijar-se de entusiasmo para analisar – de modo passado a ferro, com toda certeza – a linguagem corporal que expressava sob seus tecidos quase sintéticos.

A angústia inoportuna realizava-se sob gritos de camelôs e bufos de uma multidão assalariada em seus assentos.

“Você não é analítica, é pretensiosa e confusa.”

“Se concentra no que as pessoas falam, e não no que você acha que elas querem dizer.”

Pareciam períodos de crônicas clichês, mas era a realidade material e objetiva de uma amizade de anos que parecia corroer-se a cada mísera vogal que projetava na tela transparente de um Android.

Considero que a contextualização não tenha sido esmiuçada o bastante.

Vejamos, era uma conversa que revogava qualquer contato mecanicista que outrora tive com meu amigo. Éramos bons amigos, mas eu acredito que nunca tivemos uma projeção de honestidade para com o outro em critérios de personalidade expressada.

Éramos arquétipos estúpidos de uma massificação midiática que conduzia os jovens a serem hedonistas, porém inexpressivos em seus sentimentos e virtudes. Em suma, éramos um montante de personagens que queriam disputar o palco para ter uma autopromoção e aprovação de um e outro.

De um ano para cá, a crise endêmica assola o país – por ironia das casualidades – nosso perfil produtivo de personagens foi para o fundo do poço. Aliás, uma música que pode esmiuçar esse termo seria ‘’Exemplar do fundo do poço’’, do grupo de indie-rock, Violins (eles são bons subprodutos de uma hipermodernidade patológica, aconselho a escutarem após seus jantares). Éramos jovens de 20 anos, mas que parecíamos mais um mesclado de personagens de ‘’Skins’’, célebre e degenerada série britânica.

E essas memórias perpassavam entre várias partes de meu córtex, especialmente o pré-frontal, pois a oscilação de humor tornava-se crônica, como o balançar do 483 na Avenida Brasil.

Pela primeira vez, expus fragilidades de um dia de nascimento e de morte de uma terça-feira, para completar a dualidade jocosa que uma terça-feira evocava. Era de uma considerável humilhação abrir seu tecido emotivo para uma pessoa que, por mais que fosse seu amigo de anos, tenha se tornado seu inimigo que pertencia a um grupo divergente (e sabotador) de seu.

E perpassou, adentrou, erradicou após alguns minutos a discussão que mais parecia que romperia uma longa amizade, para se tornar um reduto de confessionários ético-morais.

O assunto era do fenômeno do individualismo, para ser pertinente à ocasião.

O confessionário alastrou-se da Penha até a Cidade Nova em uma vergonhosa performance de prolactina. Lágrimas brotavam – a este ponto – em meu colo. O sistema nervoso simpático não queria inibir; o confessionário do solipsismo tinha começado, e ele não atentava a contrações das emoções, independentemente de estar situado em uma frota de ônibus com uma aglomeração relativa de trabalhadores.

‘’Eu não sou legal, não, eu sou egoísta. Eu costumo colocar as pessoas em primeiro lugar, e eu, em contrapartida, em segundo espaço. Agora, pois, por que seria egoísta, você me pergunta. Eu não faço isso pelas pessoas, mas sim para não ficar com a consciência pesada, tá ligado.‘’

E ele começava a rir, mas eu tenho quase certeza que era de nervosismo e vergonha individual.

Eu conhecia a peça, igualmente da formação da psique condicionada por uma ideologia de uma classe individualista dominante da sociedade de lucro.

Eu o indaguei, questionei, atordoei, eu o expus – quem sabe, agora, de forma analítica – a gênese desse comportamento que, caso fosse materializado em uma maçã, e alguém fosse, por algum motivo, bater em uma árvore, a fruta iria cair em cada esquina e avenida desse Rio de Janeiro (e por que não falar do mundo inteiro).

Ele ignorou minha argumentação, que agora tinha se tornado um monólogo externo para uma tela de Android.

Porém meu confessionário ainda não tinha cessado, mas sim virado um monólogo – quem sabe, agora, interno –.

O garoto que contemplava os saberes éticos, metodológicos e morais de uma sociedade putrefata por dinheiro e solipsismo me deu um tapa tão forte que eu não me recordava da última vez que alguém tinha me transferido tamanha crítica – e olhe que eu recebo várias e espessas críticas, mas eu não as recebo bem, pois minha patologia moral não me deixa escoar as perspectivas –.

Tinha dificuldades em discernir tais indagações do jovem de óculos que se encontrava a malditos e distantes 21km de meu bairro, a 1h de ônibus. Calculava, agora – pela primeira vez, inclusive – a distância da convergência de nossa amizade no decorrer de quase 5 anos.

‘’Amizade’’.

Era uma condição de relação que não tínhamos aperfeiçoamento.

E talvez a magnitude dessa escassez de condição tão imediata para todos fosse um dos motivos que me afeiçoei a ele.

E por isso, logo, encontrava-me a tremer por uma possível perda.

Era ridículo e quase obscurantista pelo contexto geral de uma nação de adoecidos em suas morais.

Ressoava a porra de uma sirene em minha mente fragmentada, mesclando-se com o falatório do ônibus, que, para completar, estava em um clima quase semiárido pelo descaso.

‘’Você não o perdeu, qual é, é apenas uma projeção de uma possível perda, pois você nunca foi tão humilhada por ele.’’

– Pelo contrário, você o humilhava –

– E a autopiedade do semi míope confirmava a sua condição de fracasso personificada –

‘’Por isso você não o aceitava; pois você estava tão confinada a reter seus conflitos internos em sua condição moribunda, que não percebeu que tinha passado dos limites da fronteira de uma amizade, que somente depois de um ano foi ser de fato uma amizade na prática.”

O que mais parecia assemelhar-se a uma dinâmica de um jogo de simulação de um slice of life (vulgo narrativa do cotidiano), parecia a desertificação de perspectivas de afeição.

‘’Ah, meu ponto chegou. Vou soltar, piloto, para aí, na moralzinha.’’

Sabia, quem sabe, a partir de agora, que eu deveria ter maior autocontrole em minhas interações diárias.

E arcar com despesas desnecessárias com remédios de oscilação de humor desnecessários de uma condição físico-mental desnecessária por uma sociedade desnecessariamente degradante.

E desnecessária.

Desnecessariamente solipsista.

 

Lorraine Ramos Assis, 22 anos, estudante de sociologia da Universidade Federal Fluminense (UFF). Fotógrafa, cujos trabalhos podem ser acessados via Instagram (@catarseoculares). Escrevo para tirar uma sociedade da inevitável zona de conforto.

 

 

Clique para imprimir.

Comente

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *