Por Guilherme Preger
Eu, Daniel Blake. Bélgica, França, Reino Unido. 2016.
A propósito de Eu, Daniel Blake, último filme do diretor inglês Ken Loach, ganhador da Palma de Ouro de Cannes em 2016, o ex-Secretário do Trabalho do governo conservador britânico, Iain Duncan Smith, disse que o filme era injusto com os trabalhadores do serviço social inglês.
Certo ou errado, o secretário do Partido Conservador julgou o filme pelo que poderíamos denominar de “preconceito mimético”: existiria um protótipo real do qual o filme é apenas uma cópia ou representação de segunda mão. O preconceito mimético repousa na crença de que o cinema pode ser apenas uma imagem mais ou menos fiel de outra imagem primária, mais original.
O cinema sempre foi uma vítima preferencial desse preconceito, embora sua história tenha sempre sido de uma arte construtiva da imagem, arte menos de representação e mais de criação e de transformação. As operações básicas do cinema, o corte e a sutura, são técnicas de incisão e excisão da imagem pelas quais a montagem compõe um procedimento: o cinema é um aparelho através do qual as imagens são diferenciadas, transformadas, alteradas e metamorfoseadas tecnicamente.
O cinema de realismo crítico de Ken Loach habita perigosamente a zona estética desse engano centenário que confunde a imagem prototípica e a imagem secundária. Que realidade é essa que o diretor traz ao espectador para que ele reflita e critique? Nos anos 60, o teórico Roland Barthes afirmou, em relação à literatura, que não havia romance ou escrita realista, mas apenas a escrita que gera um “efeito de real”. Por isso, a pergunta a respeito do cinema de Loach precisa ser deslocada: que efeitos de real nos trazem as imagens que suas câmeras operaram?
Daniel Blake (vivido pelo ator Dave Johns), carpinteiro, em sua meia idade tardia, fica desempregado após um ataque cardíaco e se candidata a um beneficio social de saúde, porém a perícia o considera apto, apesar de seu médico lhe ter proibido de trabalhar durante a recuperação. Enquanto espera recorrer do resultado da perícia, Blake é obrigado a se candidatar ao estipêndio de salário-desemprego, mas para receber esse outro benefício, ele precisa passar por uma qualificação para entrevistas, montar e distribuir currículos e comprovar que está procurando emprego, embora clinicamente esteja incapacitado para trabalhar.
Com esse roteiro, o filme guarda semelhanças fortíssimas com o filme francês O valor de um homem, de Stephane Brizé (2015). A semelhança entre os cenários inglês (em Newscastle) e francês reforça a impressão de estarmos assistindo a uma reprodução fiel do contexto trabalhista europeu: a escassez de trabalho de um sistema econômico que produz desemprego e a destituição de uma ideia de Estado de Bem-Estar social que deveria bancar o sistema de seguridade para acolher desempregados e incapacitados.
O filme de Ken Loach (cujo roteiro foi escrito por seu colaborador frequente Paul Laverty) é a narrativa de um giro em falso. Circulando entre a má vontade dos assistentes da seguridade, as esperas longas, irritantes e desmobilizadoras do serviço de teleoperadoras e as complicações do mundo digital com as quais é incapaz de lidar, Daniel Blake parece dar voltas sem sair do lugar. China, seu jovem vizinho, lhe adverte que o sistema fará de tudo para que ele desista de solicitar aquilo que tem direito.
No entanto, Daniel Blake cumpre seu caminho pacientemente. A certa altura, ele desabafa à única assistente que o escuta. Ambos estavam se enganando mutuamente: ele estava procurando empregos que não existiam e ela oferecia serviços que o Estado não quer ou não pode mais oferecer.
O contexto subjacente de Eu, Daniel Blake é a da capitulação do Estado frente ao Capital. Estado que não quer mais cumprir seu papel de proteção social e quer despejar sobre os ombros dos trabalhadores a culpa por esta capitulação. Com isso, surge a farsa da procura por empregos que não existem, das perícias que não periciam, da qualificação dos desqualificados ou incapacitados. O protagonista do filme, no entanto, é aquele cuja dignidade é a de não desejar participar dessa farsa.
Contra a ficção dos empregos que não existem e do Estado que é apenas um subsidiário subalterno de um poder econômico maior e invisível, Eu, Daniel Blake apresenta a narrativa do trabalhador que quer valer sua dignidade de cidadão e da solidariedade cotidiana entre os trabalhadores. Daniel oferece sua ajuda, seu apoio e seus dotes de carpinteiro a Katie (Hayley Squires), mãe solteira homeless de dois filhos que também procura emprego. Numa das cenas mais pungentes do filme, ele a ajuda e a incentiva num momento em que Katie sucumbe de fome num centro de distribuição de cesta básica. Ele lhe diz que a fome não é motivo para vergonha e que há dignidade em buscar alimentos para os filhos e em lutar por sua subsistência. Nesse momento também aparecem as agentes sociais que realmente se mobilizam pelos necessitados.
Assim, à farsa fictícia agenciada pelo conluio entre o Estado e o Mercado, Loach opõe o realismo do coração debilitado de Daniel, da fome de Katie, e de uma solidariedade subterrânea que se mantém viva sob os escombros da própria classe trabalhadora desmobilizada. No entanto, esse realismo é antes alegórico, pois o coração solidário de Blake é também a imagem metafórica e contrastante do coração ausente do sistema social desumano. E a solidariedade entre os trabalhadores é o negativo do acordo espúrio entre Capital e Estado.
E há o fato de Daniel Blake ser um carpinteiro, o que projeta no filme uma forte ressonância religiosa cristã. Mas antes da sugestão religiosa, há a evidente caracterização de Blake como um trabalhador hábil com as mãos, com um saber ancestral e essencialmente analógico, mas tendo que lidar com um mundo digital, imaterial e aparelhado por corporações que se escondem atrás de sistemas informatizados. Não é um gap geracional que o filme aborda, mas um contraste de mundos e modos de existência radicalmente diferentes. Assim, a solidariedade trabalhista que surge nesse filme parece ser remanescente de um mundo que se extingue.
No novo mundo do capital digitalizado e da capitulação do Estado, os sindicatos sequer são lembrados e os trabalhadores estão entregues à própria sorte. Por isso, o filme de Ken Loach não é o retrato realista de uma época, mas uma fábula humanista de feições kafkianas, por suas armadilhas circulares e procuras absurdas. Fábula que faz aparecer as imagens que estão excluídas das configurações de poder dominantes, digitalizadas, algorítmicas e programadas, antes que essas imagens se tornem completamente esquecidas ou absolutamente ignoradas.
A questão final é: haverá lugar para o humanismo cinematográfico de Ken Loach? O efeito de real dessa fábula será capaz de mexer com o coração de silício do sistema? Numa cena emblemática do filme, Daniel Blake faz seu protesto na rua pichando o muro do prédio da seguridade social com seu nome e o de sua luta. É aplaudido pelos transeuntes como um novo herói. Se essa mesma cena ocorresse no Brasil, não faltaria talvez quem o acusasse de vandalismo. Estamos em tempos difíceis para o humanismo. Por isso, as imagens precisam se emancipar do presente para propor versões de mundos com outras relações de afeto e de sociabilidade e dar nomes às lutas que engendrarão novas configurações de espaço-tempos.
Guilherme Preger, carioca, é engenheiro e escritor. É autor de Capoeiragem (7Letras/2003) e Extrema Lírica (Ed. Oito e Meio/2014), e um dos organizadores do coletivo literário Clube da Leitura no Rio de Janeiro, tendo participado como autor e editor das três coletâneas lançadas pelo grupo. Atualmente, é doutorando em Teoria Literária da UERJ, onde realiza pesquisa sobre a aproximação entre Literatura e Ciência. Escreve sobre cinema desde 1995, quando recebeu um prêmio de crítica literária do Grupo Estação e do Jornal do Brasil num ensaio sobre o filme Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha.