Por Guillherme Preger
Visages, Villages. França. 2017.
É fácil dizer que Visages, Villages (2017) celebra a arte do encontro. No entanto, o encontro nunca é uma tarefa fácil.
O filme de Agnes Varda e JR começa com uma série de desencontros banais entre os dois e termina com o dramático desencontro entre os diretores e o cineasta Jean-Luc Godard. Entre esses desencontros, ocorre o encontro dos diretores, como a dizer que os encontros são mais improváveis do que os desencontros.
Todo encontro é uma reunião entre afinidades e contrastes. Este se dá entre uma senhora de 88 anos e um jovem de 33 anos. Ambos são artistas da imagem. E a imagem que o espectador vê é justamente a imagem do encontro que coalesce formada pela liga dos afetos comuns, mas também por tensões de diferenças e disparidades. O jogo de cena é o mover dessas polarizações entre aproximações e distanciamentos.
A começar, como diz o título, por um encontro de rostos e cidades, em que fotografar as faces de seus habitantes é uma oportunidade para falar e filmar as cidades ou os lugares. À primeira vista, Agnes Varda é a cineasta e documentarista das pequenas vilas francesas e de suas praias, como atesta sua já longa obra, enquanto JR é o fotógrafo e grafiteiro dos rostos de pessoas comuns expostos na grandeza monumental de suas colagens nos muros das cidades que visita.
Mas, no filme, JR é o motorista do caminhão que funciona como uma câmera rodoviária, enquanto Agnes Varda está na mesma viagem pela memória e pelas recordações afetivas, isto é, pelos seus traços e suas fixações. Trata-se, portanto, também de retratar as cidades e de viajar pelos rostos.
Mas há também outros opostos que se encontram nesse curso de imagens: o contraste entre permanência e impermanência. A leveza nomádica do registro de JR se dá pelo caráter efêmero e perecível de suas fotografias, coladas analogicamente nos muros caiados e abandonados das vilas e das cidades, enquanto Varda procura no registro fotográfico a resistência da memória, como o rosto translúcido de Cleo, cuja beleza deve superar a passagem do tempo. A todo o momento, a diretora de Cleo das 5 às 7 recupera uma imagem do passado que abre uma trincheira contra a liquidez dos tempos modernos.
Há, pelo menos, duas políticas de imagens que se confrontam nesse encontro cinematográfico. A herança esquerdista da diretora se revela na elegia sobre a dignidade do trabalho numa época em que o trabalho material e corporal supostamente regride frente à hegemonia digital e financeira do capital. E essa elegia adquire um viés feminista, seja na resistência da senhora que é a última moradora de uma vila de operários abandonada ou no testemunho oral e fotográfico das mulheres dos trabalhadores de carga. Essa relação entre feminismo e trabalho é uma das contribuições políticas mais relevantes da obra de Agnes Varda, ela própria mulher e operária da imagem. A uma das mulheres que diz estar sempre atrás de seu marido, Agnes observa que ela não está atrás e sim ao lado. É nesse trabalho de deslocamento que sua arte propõe uma interrupção da incessante desmobilização forçada pelos ritmos acelerados da economia financeira.
A política de JR, no entanto, é menos definida. Seu modelo de trabalho é o do empreendedor que convoca os funcionários de sua própria empresa a realizar a montagem de suas colagens, a qual ele supervisiona. O trabalho poético de JR é influenciado pelo surrealismo, pelo situacionismo e pela arte urbana do grafite. JR pertence a um grupo de artistas que deseja romper as barreiras e limites artificiais entre arte e vida. Em sua própria existência, ou em seu trabalho, ninguém realmente consegue traçar uma fronteira onde está a vida e onde está a arte. A obra de arte é uma forma de vida. Por isso seu evidente desapego pela permanência das imagens. A mensagem de JR é a de não resistir à fatalidade da entropia, mas aliar-se a ela. Por isso, o enorme labor em colar a imagem na ruína abandonada na praia é perdido em apenas uma manhã da maré marítima sem ser lamentado. Há antes de se perceber a beleza inerente de sua efemeridade, que é a da própria vida.
Num diálogo decisivo, JR pergunta a Varda sobre se ela, com seus 88 anos, tem medo da morte. É como se o filme transmitisse um recado freudiano: ao final, serão a entropia e a pulsão de morte as grandes vencedoras. A vida é apenas um desvio, um alongamento nomádico, um retardamento a essa fatalidade. Mas como Freud mesmo comparou a pulsão psíquica à montagem cinematográfica, temos em Visages, Villages um encontro de afinidades entre a montagem cinematográfica (afinal realizada apenas por Agnes) e a colagem gráfica, realizada por JR e sua equipe. Colagem e montagem são formas do heterogêneo e dos contrastes. E desses contrastes, o encontro não pode suprimir ou dissimular os atritos, ou mesmo os confrontos.
Ao final, o filme é aceitação do que não pode ser resolvido por nenhum acordo, por nenhuma empatia dos afetos, ou mesmo pela amizade. O encontro, para ser justo, precisa respeitar aquilo que resiste a se conciliar em seu âmbito. A marca da memória é justamente a desses heterogêneos que se recusam a se dissolver. A arte é, com certeza, uma forma de vida, mas que não pode se confundir com a trivialidade da entropia. O modo de existência da arte é a sua resistência contra a banalidade e contra o “mais provável”. Os encontros que realmente permanecem são os cruzamentos desses desvios raros e imprevistos que chamamos de acontecimentos.
Guilherme Preger (1966) é escritor e engenheiro, natural do Rio de Janeiro. É autor de Capoeiragem (7Letras, 2003) e Extrema lírica (Oito e Meio, 2014). É um dos organizadores do Clube da Leitura. Participou como autor e editor das quatro coletâneas do coletivo. É mestre em Literatura Brasileira e doutorando em Teoria Literária pela UERJ, com pesquisa sobre as relações entre ciência e literatura.