Por Guilherme Preger
Arábia. Brasil. 2018.
Arábia, de Affonso Uchoa e João Dumans, foi o vencedor de melhor filme do Festival de Brasília de 2017. Chegou às salas brasileiras em 2018, com pouca divulgação. Trata-se de um dos melhores filmes da recente safra de cinema que, no entanto, teve pouca atenção do público.
O filme abre com a cena de um rapaz adolescente (interpretado por Murilo Caliari) dirigindo sua bicicleta na paisagem montanhosa de Minas Gerais, ao som de uma canção de rock de Steven Van Zandt. Em breve, vemos uma usina de mineração ao fundo. Ele se dirige à sua casa onde seu irmão mais novo o aguarda. Mais adiante, saberemos que esse irmão tem um problema de saúde e que ambos os irmãos estão com os pais distantes por um motivo desconhecido. Eles são visitados por uma tia que trabalha como enfermeira na empresa de mineração. Os irmãos, embora menores, moram aparentemente sozinhos.
A vida dessas crianças é misteriosa. Onde estão os pais? Por que as crianças moram sós? De que doença sofre o irmão mais novo? Ele tem tosse, talvez tenha a ver com a indústria de minério da região de Ouro Preto, onde se passam as cenas. Os espectadores começam a se interessar pela história intrigante. O problema é que a história sugerida pelas cenas iniciais não é o verdadeiro enredo do filme. Trata-se de um mcguffin, uma pista falsa. Talvez esse início de roteiro desse outro bom filme.
As cenas seguintes mostram a tia enfermeira atendendo um operário da usina que teve um desmaio e entrou em coma. Ela procura, mas não há registros de parentes. O operário parece não ter família. Ela pede ao sobrinho, o mesmo adolescente da primeira cena, que vá à casa dele buscar mudas de roupa. O jovem vai até lá e, ao procurar as roupas, se depara com um caderno manuscrito pelo qual se interessa. Ele senta e começa a ler. E é aí que finalmente o filme começa, com a cartela do título Arábia aparecendo na tela.
Com esse início tardio, o filme muda de registro e adquire uma narrativa em off em primeira pessoa. Quem narra dessa vez é Cristiano, vivido por Aristides de Sousa. Este é o verdadeiro protagonista de Arábia. Ele conta que, quando mais jovem, foi preso por envolvimento em drogas. Depois, já livre, trabalha em vários serviços em cidades diferentes do interior de Minas Gerais. Catador de mexerica, pedreiro, carregador de cimento, operário de construção civil de rodovia, operário de indústria têxtil e finalmente operário de mineração em Ouro Preto. Ele vai de cidade em cidade em Minas, travando contato com gente diferente, todos trabalhadores como ele. Os serviços em que trabalha são todos precários.
O filme lembra uma espécie de Grande Sertão, Veredas contemporâneo, só que as veredas são rodovias. Há menos poesia na fala de Cristiano do que de Riobaldo, no entanto, sua narrativa é simples, direta, franca e passa um grau de honestidade e verdade. Na verdade, sua narração lembra mais a de Irandhir Santos em Viajo porque preciso, Volto porque te amo, de Marcelo Gomes e Karim Ainouz. Toda a narração de Cristiano é acompanhada cena a cena, imagem a imagem pelo espectador. O filme se constrói por essa trama entre as imagens e a voz do narrador, cuja melancolia atravessa cada fotograma.
Na Indústria têxtil conhece Ana (Renata Cabral) com quem começa uma relação. Após um aborto natural, o casal se separa e Cristiano vai procurar trabalho na mineração. Na usina mineradora em Ouro Preto participa de um grupo de teatro, uma atividade cultural proporcionada pelo ambiente profissional, e é incentivado a contar histórias. É por isso que começa a escrever suas memórias nas notas manuscritas que estão sendo lidas pelo rapaz adolescente e cujas palavras compõem a narração que ouvimos na tela de cinema.
Por que o filme se chama Arábia apesar de se passar no interior mineiro? Não há uma indicação clara, mas há pistas. Por um lado, há a estrutura de uma narrativa dentro de outra, típica do modelo de As mil e uma noites. A história de Cristiano está dentro da história do rapaz adolescente que abre o filme. Assim, a história a que assistimos na tela, contada oralmente pela voz em off de Cristiano mimetiza uma narrativa oral no interior de uma narrativa visual. Como nas histórias de Xerazade, também somos atraídos para a narrativa do jovem trabalhador através do interesse na narrativa do jovem adolescente. Em nenhum momento, porém, o filme retornará à história original, de modo que esta última permanecerá um mistério não concluído.
Há também uma anedota contada por um dos personagens ao longo da história, um dos colegas de trabalho de Cristiano na construção civil. Em tom de piada, ele conta sobre um empresário árabe que veio ao Brasil atrás de mão de obra barata para uma construção. Ele seleciona alguns empregados para trabalharem no Oriente Médio. A viagem de avião para lá, no entanto, é obrigada a um pouso de emergência no meio do deserto do Saara. Ao descerem no deserto, os trabalhadores se assustam ao ver as dunas infinitas: com tanta areia, diz um deles, imaginem quando o cimento ficar pronto…
Essa anedota nos dá a dica sobre a atualidade urgente do filme dos diretores Uchoa e Dumans: trata-se de uma fábula cinematográfica sobre o ambiente de trabalho – explorado, extenuante, mal remunerado, precário – do Brasil contemporâneo. E que não oferece redenção, como o deserto não oferece fim. Em tempos de uma brutal reforma trabalhista, que agravou um quadro de exploração laboral já presente, Arábia nos traz as imagens vivas desse contexto violento, desesperançado e deserto de humanidade. Nesse aspecto, esse filme da dupla de diretores se parece com Corpo elétrico, de Marcelo Caetano, que narra a história de trabalhadores de uma confecção de moda da cidade de São Paulo. O filme de Caetano, cujo título é tirado de um poema de Walt Whitman, é um filme sobre corpos eletricamente livres nos períodos de folga, mas encarcerados no ambiente de trabalho. Corpo Elétrico, ao contrário de Arábia, mostra como a alegria e o prazer desses corpos se contrapõem à experiência rotineira e banalizadora da violência da exploração do trabalho.
A narrativa de Cristiano é mais melancólica e afetiva e se mantém forte e comoventemente digna, embora sem uma alegria imediata. Ambos os filmes trazem as imagens das relações trabalhistas em mutação em um país periférico que está destruindo os fios frágeis da precária rede de proteção social que havia sido criada e no qual o trabalho está se tornando mais e mais apenas um meio de alienação, sofrimento e espoliação.
A trajetória melancólica de Cristiano é uma passagem da prisão à consciência, que chegará a um custo dolorido. Ele é, aliás, um personagem que, como o protagonista de Guimarães Rosa, faz de suas palavras um instrumento de autoconsciência. Se Riobaldo era um jagunço, Cristiano é um típico trabalhador precarizado, trafegando numa fronteira limítrofe entre o trabalho formal e o informal. Ele é, sobretudo, um viajante desenraizado. A trilha sonora de Raul Seixas (Cowboy fora da lei) ou os Racionais (Homem na estrada) ilustra a sua vocação de caminhante solitário em busca de sua própria verdade.
Arábia segue a linha de mistura entre o ficcional e o documentário e a ambivalência entre esses dois registros. A maioria dos personagens é vivida por não atores. As cenas de descanso da jornada são compartilhadas com verdadeiros trabalhadores em seus momentos de lazer e descontração. O próprio Aristides de Sousa, que já estava presente no filme anterior da dupla de diretores, é um ator semi-profissional. Essa ambivalência entre real e ficcional acentua um sentido, que não é apenas de verossimilhança, mas de vivência de um mundo comum, entre homens e mulheres comuns.
Assim, as palavras escritas trazem a voz e esta as memórias de um homem comum que chegara ao trabalho praticamente sem identidade e raízes. Sua narrativa corresponde a uma reconstrução da memória pessoal. Sua experiência amorosa com Ana, apesar de ser uma história de amor simples e comum entre um homem e uma mulher, guarda simbolicamente um sentido sublimatório e libertador. Num momento climático, como no poema Operário em construção, de Vinícius de Moraes, durante o trabalho industrial, Cristiano tem uma súbita iluminação, na qual ele adquire “a dimensão da poesia”, como dizia o poeta carioca em seu poema. No entanto, igual também aos versos, ele percebe que essa experiência poética é intransmissível e só o silêncio lhe resta.
O paradoxo está no fato de que, apesar de não poder dividir sua experiência com seus colegas, esta mesma é compartilhada com os espectadores do filme através de sua narrativa oral e visual. E também com o jovem que a lê no caderno manuscrito. Assim, Cristiano é também um “operário em construção” como no poema de Vinícius e também, como o personagem de outra canção de Chico Buarque, Construção, suas memórias, traduzidas em imagens e palavras, atrapalham o “tráfego” das coisas que correm em direção à ruína do país, em especial no mundo do trabalho. Feita da mesma matéria dos sonhos, a ficção-documental de Affonso Uchoa e João Dumans é um dos testemunhos mais definitivos da potência da arte que guarda o que resta da esperança em meio à catástrofe de uma nação em colapso.
Guilherme Preger (1966) é escritor e engenheiro, natural do Rio de Janeiro. É autor de Capoeiragem (7Letras, 2003) e Extrema lírica (Oito e Meio, 2014). É um dos organizadores do Clube da Leitura. Participou como autor e editor das quatro coletâneas do coletivo. É mestre em Literatura Brasileira e doutorando em Teoria Literária pela UERJ, com pesquisa sobre as relações entre ciência e literatura.