Drops da Sétima Arte

Por Guilherme Preger

 

Uma noite de 12 anos (La noche de 12 años). Uruguai/Espanha/França/Argentina. 2018.

 

 

Uma noite de 12 anos, do uruguaio Alvaro Brechner, relata a história de três militantes do grupo guerrilheiro Tupamaros, que foram feitos “reféns” do governo militar uruguaio durante 12 anos da ditadura naquele país. Os guerrilheiros são Mauricio Rosencof, Eleuterio Huidobro e José Mujica, que vem a ser el Pepe Mujica.  Trata-se da recriação ficcional do relato autobiográfico dos dois primeiros guerrilheiros em seu período de confinamento.

É a história de um sequestro de Estado, assumido na própria designação dos prisioneiros como “reféns”. Eles ficaram presos, isolados em solitárias durante 12 anos, sem direito a julgamento, ou sem conhecer as acusações. O filme abre com um trecho extraído de A Colônia penal, de Franz Kafka, quando o prisioneiro pergunta qual a sua sentença, e seus algozes lhe respondem que ele saberá em sua própria carne.

O filme apresenta justamente a história de como os corpos dos prisioneiros suportaram a desumanização de 12 anos de confinamento. É um filme sobre a resistência da carne e dos corpos. E também da fala e da linguagem, em ambientes quando a comunicação ou era proibida ou impossível.

 

Cena de “Uma noite de 12 anos” / Foto: divulgação

 

A película de Alvaro Brechner é o que chamaríamos de “tour de force”: como fazer um filme do confinamento, do absoluto isolamento social, da incomunicação, da inação dos personagens silenciados. Nesse esforço estético reside sua principal força cinematográfica, vinda da contenção, da sobriedade e da justeza emocional.

Essa força estética nasce do desdobramento de um paradoxo: os reféns foram presos para que fossem silenciados, invisibilizados e esquecidos. A câmara cinematográfica de Brechner traz a luz ao presente desse período de sombras, de escuridão e terror. Tal luz nos deixa ver, através da ficção, o que foi negado aos olhos do público e do povo, uruguaios e internacionais.

Essa é a questão que se sobressai nas raras oportunidades em que os presos tiveram de falar com “o mundo exterior”, como com seus parentes, depois de intervalos longos. Nessas ocasiões eles não podiam demonstrar seu sofrimento, sua degradação e a opressão absoluta sobre seus corpos.

Assim, na entrevista com a Cruz Vermelha, quase dez anos após a prisão, os presos não têm o direito de testemunhar sua verdadeira situação. Tratava-se apenas de uma encenação, onde a organização humanitária apenas corroborava a violência do regime.

Por isso, a exibição cinematográfica desse pesadelo histórico 30 anos após sua ocorrência tem uma potência estética e política. Pela linguagem da ficção audiovisual o espectador é levado a experimentar a tortura existencial do confinamento absoluto. E a violência do regime se torna existencialmente demonstrada.

Nesse aspecto, a força política da película não necessita de discursos. Basta que a câmera encaminhe a sensibilidade do espectador para esse mundo sombrio e desumano dos “porões da ditadura”.

 

Antonio de La Torre em “Uma noite de 12 anos” / Foto: divulgação

 

Nenhum filme histórico e autobiográfico é um registro mais ou menos fiel do “que se passou”. Não é um encontro com o passado. O espectador, na sala de cinema, tem um encontro presencial com as imagens do filme. Os eventos se passaram como passa qualquer evento, mas a história ficcional se desenvolve no aqui e agora do cinéfilo. O filme é um acontecimento e como tal ele é a figura de um instante. Cada um lida com sua surpresa, estranheza e absurdo a seu modo e recompondo um mundo.

No filme de Brechner, para poder sobreviver, os prisioneiros, que se encontram isolados, desenvolvem uma linguagem sonora através de batidas na parede para poderem se comunicar. É uma linguagem inventada e através dela eles são capazes de criar um mundo, pois não há mundo sem linguagem e não há existência sem mundo. Assim, o filme pode ser interpretado como a invenção de uma linguagem para que tempos ilhados se comuniquem através dos muros espessos do esquecimento e do silêncio.

Talvez o momento mais pungente de Uma noite de doze anos seja a cena do banho de sol dos prisioneiros depois de anos sem ter acesso ao ar livre, na qual se ouve a voz da intérprete Silvia Perez, cantando a canção The Sound of Silence, de Simon & Garfunkel. Em outro filme seria essa uma cena melodramática. A música nos alerta que vivemos uma ficção. Mas neste filme ela se torna a demonstração de como o silêncio tem uma potência. A história deve ser vivida ficcionalmente para que não se repita como farsa.

 

 

Guilherme Preger (1966) é escritor e engenheiro, natural do Rio de Janeiro. É autor de Capoeiragem (7Letras, 2003) e Extrema lírica (Oito e Meio, 2014). É um dos organizadores do Clube da Leitura. Participou como autor e editor das quatro coletâneas do coletivo. É mestre em Literatura Brasileira e doutorando em Teoria Literária pela UERJ, com pesquisa sobre as relações entre ciência e literatura.

 

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