Drops da Sétima Arte

Por Guilherme Preger

 

Dor e Glória. Espanha. 2019.

 

 

Dor e Glória, do espanhol Pedro Almodóvar, é o mais recente filme de um diretor consagrado. Há nisso uma ironia, pois o diretor começou sua já extensa carreira cinematográfica como um enfant terrible do cinema espanhol. O filme estreou no último Festival de Cannes, depois de três anos sem o diretor estrear produções (o anterior é Julieta, de 2016). Lá ele recebeu a atenção devida a um dos maiores artistas visuais contemporâneos e o mais renomado artista espanhol. Dor e Glória está certamente à altura de sua grandeza, aquela que não precisa provar mais nada ao público, e por isso pode se lançar a um olhar sóbrio e introspectivo sobre sua própria trajetória.

Retrospectivamente, sua obra é contemporânea da redemocratização espanhola após o regime franquista. Seu primeiro filme, Pepa, Luci, Bom y otras chicas de montón, é de 1980, e apresenta uma liberdade formal que parece a própria expressão da liberdade política democrática que se tornava imperiosa. Uma liberdade que transborda para o comportamento sexual. Almodóvar tornou-se um dos maiores porta-vozes da liberdade sexual homoafetiva e dos direitos das mulheres, protagonistas frequentes de sua obra.

Dolor y gloria (DG) é a história de um aclamado diretor de cinema, Salvador Mallo, vivido por Antonio Banderas, o ator masculino mais presente na filmografia do espanhol. O protagonista encontra-se num momento de ocaso, sofrendo paralisia criativa devido a dores por todo corpo, sobretudo na coluna vertebral. As comemorações de seu primeiro filme, de título Sabor, realizado no início dos anos 80, o levam a procurar o ator protagonista Alberto (Asier Etxeandia), com quem se desentendeu na época. Essa procura se dá num afã de reconciliação, não só com o ator, mas também com sua primeira obra. O ator, que também está num período de ostracismo, apresenta ao diretor a droga heroína. A briga em torno do consumo de drogas havia sido o pretexto do desentendimento passado entre os dois. A droga ajuda Salvador a suportar suas dores físicas, ao mesmo tempo em que intensifica suas memórias. Mas o filme dá a entender que é o não reconhecimento do talento de Alberto a real razão do afastamento entre ambos.

 

Antonio Banderas na pele de Salvador Mallo / Foto: divulgação

 

A reaproximação entre Salvador e Alberto é o mote para passar sua história a limpo. Ela ocorre entremeada com as memórias de Salvador de sua infância, da vivência com sua mãe e seu pai, no interior ensolarado da Espanha. Essa rememoração do personagem é trabalhada na tela através da técnica do flashback. As memórias lhe vêm com as imagens de sua mãe jovem, vivida por Penélope Cruz, e com ela mais idosa, próxima à sua morte, vivida por Julieta Serrano. Entendemos então que o impasse criativo do diretor tem relação com a depressão nunca superada pela morte recente de sua mãe e pela sensação de não ter lhe correspondido às expectativas.

Salvador é confessadamente um alterego de Almodóvar, vivido pelo seu “ator-fetiche”. Não é, no entanto, o primeiro filme de memórias do diretor. Há mesmo uma trilogia da memória em sua filmografia, composta pelos filmes Tudo sobre minha mãe, Carne trêmula e Má educação. Nestes três filmes, a memória pessoal é construída ficcionalmente. A ficção é a forma mesmo na qual a memória pode se expressar. São filmes que não destoam de toda sua produção anterior. DG, no entanto, é um filme mais claramente pessoal, muito próximo ao relato autobiográfico. Mas em Almodóvar, toda ficção é sempre equívoca. O cinema não é o campo do realismo mimético. Sempre se admirou a intensidade cromática dos filmes do diretor associada à intensidade passional de seus personagens, sempre à beira de um ataque de nervos, da histeria e do excesso. DG abre com densas abstrações cromáticas, como se fossemos jogados num quadro de Jackson Pollock animado. A textura da tinta na tela e as composições de suas formas indicam o campo movediço onde se constrói a memória e se configura a própria realidade.

DG não é uma autobiografia, mas uma autoficção. A obra de Almodóvar está mais próxima a Oito e Meio de Fellini do que de Fanny e Alexander, de Ingmar Bergman. O filme é exemplar, aliás, da diferença entre os dois modos de relato. O cinema autobiográfico procura traduzir em imagens as cenas de uma vida. A autoficção é, por outro lado, um jogo entre representação da memória e fantasia da ficção. Entre as duas, há o enquadramento da câmera. Na autoficção, a autorreferência da forma traz o enquadramento para o interior da imagem, de modo que o espectador (o receptor) perde a referência de qual plano efetivamente ele se encontra.

É um jogo com a memória e não sua representação. Por isso, embora seu primeiro filme lhe parecesse canhestro nos anos 80, e a atuação de Alberto lhe parecesse fraca, quando rememorados do presente, tudo muda de sentido, a própria consistência das memórias é transformada. A glória posterior redime a dor passada, mas por outro lado, é a dor do presente que torna glorioso o passado. Um dos maiores interesses deste filme é justamente uma releitura dos anos 80, década considerada “perdida” e conservadora, mas que no filme é resgatada como uma época de alegria, excesso existencial e experimentação artística. Ou em outros termos, o cinema de Almodóvar é um contraponto barroco ao puritanismo político de uma época marcada pela AIDS, o yuppismo e a regressão neoliberal.

 

Nora Navas e Antonio Banderas em Dor e Glória / Foto: divulgação

 

Em termos políticos, há outro elemento importante nesta última obra de um diretor engajado tanto nas lutas clássicas da esquerda como naquelas da identidade, sobretudo na questão da sexualidade e do gênero. Como disse um crítico, é bom ver um filme de Almodóvar em que não haja uma mulher que tenha sido violentada. De fato, em filmes como Ata-me, Fale com Ela, ou a Pele em que habito, figuram mulheres sequestradas ou imobilizadas por homens. Ninguém duvida do protagonismo feminino na obra de Almodóvar e como seu cinema trabalha a ideia da emancipação feminina através da emergência de sua fala. Fala que emerge a partir de corpo, ou da “carne trêmula”. Em particular, em Habla con ella, a ausência da fala na mulher em coma significa mais fortemente o seu cárcere corporal e é através da conversa furtiva que ela encontra a sua redenção, pois, por mais desesperançada, a fala sempre retorna em diálogo, ao contrário da unilateralidade da violência sexual.

Mas Dor e Glória é um filme protagonizado por homens, apesar da sombra recorrente da mãe. Na cena em que o garoto Salvador jovem reconhece a sua sexualidade pela visão do corpo de um homem nu, a iminente chegada da mãe é o elemento repressivo que faz irromper o desejo. Mais tarde, há uma longa e íntima cena de beijo entre  Salvador e seu antigo amante, Marcelo. É tanto um beijo que supera a separação e o tempo, quanto é também signo da provável despedida e da perda. Porém, é um testemunho que o desejo permanece vivo.

A homoafetividade masculina está de retorno neste filme com a força de seu A Lei do Desejo (1986), um dos seus melhores e mais conhecidos filmes, e também com Antonio Banderas. Seu sucesso sugeriu o nome à própria produtora do diretor (junto com seu irmão Agustin). Isso nos faz lembrar que Almodóvar não é um cineasta nem da sexualidade nem do gênero, mas sim do desejo. Nos seus filmes, a fronteira correta não está entre a ficção e a realidade, mas no terreno ambíguo entre desejar e ser desejado. Geralmente, enfatizamos o primeiro dos termos e deixamos ao narcisismo individual o segundo.

Os anos 80, vistos à distância, parecem anos narcísicos, sem dúvida. Mas o que Pedro Almodóvar nos ensina é que não há realmente uma oposição entre os termos. Barroco, seu cinema é uma “coincidência dos opostos” (coincidentia oppositorum).  Só desejamos para que, como seres desejantes, possamos ser desejados. Talvez esta seja a verdadeira lei de seu cinema: figurar o desejo, que não está na mulher, nem no homem, nem nas personagens de sexualidade híbrida, tão comuns em seus filmes. O desejo não está em um polo ou outro. Só existe desejo entre o sujeito e o objeto do desejo, entre esse que deseja e aquele desejado. O desejo é coincidência das partes, o cancelamento das oposições. É o desejo que se estende como película no cinema e não a tela que o figura. Afinal, só vamos ao cinema para aprender a desejar, já obedecendo desde sempre à sua Lei.

 

 

Guilherme Preger (1966) é escritor e engenheiro, natural do Rio de Janeiro. É autor de Capoeiragem (7Letras, 2003) e Extrema lírica (Oito e Meio, 2014). É um dos organizadores do Clube da Leitura. Participou como autor e editor das quatro coletâneas do coletivo. É mestre em Literatura Brasileira e doutorando em Teoria Literária pela UERJ, com pesquisa sobre as relações entre ciência e literatura.

 

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