Por Guilherme Preger
Motel Destino. Brasil. 2024.
Nono longa-metragem ficcional do diretor cearense Karim Aïnouz, Motel Destino fez sua estreia no Festival de Cannes de 2024, sendo aclamado pelo público, porém sem prêmios. É estrelado pelo veterano ator Fábio Assunção, e pelos jovens atores Iago Xavier e Nataly Rocha.
Heraldo (Iago Xavier) é um jovem de 21 anos, morador de uma cidade no litoral do Ceará, que faz negócios escusos para uma misteriosa gangue que serve a uma pintora local. Apesar de sua atividade ilícita, Heraldo sonha mesmo em juntar dinheiro para ir morar em São Paulo e procurar por seu desaparecido pai. Porém, por causa de uma mal sucedida tarefa, o jovem é obrigado a se esconder num motel na periferia da cidade e permanece lá trabalhando clandestinamente. Então conhece Daianna (Nataly Rocha), que é a gerente do lugar e casada com Elias (Fábio Assunção), o dono do estabelecimento.
Elias, a princípio, acolhe bem o rapaz, que ajuda na manutenção do estabelecimento, porém, como era de se esperar, Heraldo e Daianna se envolvem amorosamente, de maneira furtiva. Assim, à clandestinidade do trabalho do rapaz se soma a clandestinidade erótica do encontro com Daianna.
Motel Destino, assim como Praia do Futuro (2014), é um filme de cores contrastantes e luz forte, ensolarado. Em Praia do Futuro, a luz solar e o clima quente do litoral nordestino contrastam com o frio e o cinza de Berlim, onde metade da história se passa. Em Motel Destino, não há essa oposição. A distinção neste filme se dá entre a liberdade do corpo e o confinamento do espaço, que não é só físico, mas também o da precariedade da existência, um confinamento social.
O filme está cheio de reminiscências, tanto da vida nordestina, que vai do sotaque da fala, aos modos corporais e às formas de convivência locais, mas sobretudo de reminiscências (ou seriam referências?) de seus filmes anteriores, particularmente de uma de suas primeiras obras, O Céu de Suely (2006). Assim, embora em Praia do Futuro reapareçam o verde do mar, as hélices das usinas eólicas, as dunas e as falésias das praias, em O Céu de Suely há mais similaridades de enredo, como citações cinematográficas, algumas mais evidentes, outras mais sutis.
Tanto Suely (Hermila Guedes), do filme de 2006, quanto Heraldo, protagonistas de vida precária, querem emigrar do Nordeste (particularmente do Ceará) para São Paulo como fugitivos da existência sem futuro. As praias cearenses podem ser do futuro, mas o destino do precariado não. Ambos buscam reencontrar pessoas que perderam: Suely, o pai de seu filho e Heraldo, seu próprio pai, para então poderem seguir em frente. Suely vende seu corpo numa rifa, Heraldo de certa maneira também vende o seu num trabalho subalterno e clandestino. Mas diferentemente daquela, que não encontra prazer em seu ato, Heraldo busca em Daianna uma alegria erótica genuína.
Já o nome dessa personagem, vivida por Nataly Rocha, é uma sutil referência à canção que abre O Céu de Suely, uma versão do clássico do grupo Bread, cantada pela cantora Diana. E, curiosamente, Motel Destino termina precisamente tal como se inicia esse filme anterior, dando a entender que a obra cinematográfica de Karim teria fechado um ciclo. Ora, ambas as cenas musicais, filmadas em super-8, são passagens utópicas de um destino mais feliz.
Esses filmes citados se passam no Ceará, terra natal do diretor. Como mencionado, o cinema de Karim é feito de reminiscências, onde se destaca e resplandece a luz solar desse Estado Nordestino, que abre aos personagens uma vida intensa, porém sem futuro, quando a fuga parece ser a melhor opção. No caso do jovem Heraldo, o motel é primeiramente o lugar onde ele é vítima de um logro. Depois, já trabalhando lá, torna-se um lugar de refúgio. Finalmente, torna-se junto a Daianna um recôndito lugar para a existência libidinal e amorosa, entre os gemidos obscenos dos demais frequentadores. Esses gemidos, que se sobressaem do cenário de luzes fosforescentes, perdem sua característica obscena para se tornarem o fundo sonoro dos encontros do casal. Mas, há também a figura tanto cordial quanto amedrontadora de Elias, para compor o triângulo amoroso desse roteiro.
Elias, vivido em grande participação por Fábio Assunção, é o dono do estabelecimento e marido de Daianna. Sua recepção de Heraldo é inicialmente cordial. Mas tal cordialidade aparente é ambígua como no mito cordial do brasileiro, tanto econômica quanto emocionalmente. Heraldo é a rigor um trabalhador barato para Elias, pois consegue fazer pequenas obras sem cobrar, ou seja, através de trabalho não remunerado. O fato de ser um foragido o coloca numa posição ainda mais precária. Mas Heraldo não é tanto um rival amoroso para Elias, quanto também é um objeto sexual, já que a “macheza” encenada de Elias esconde uma dissimulada homoafetividade.
Como em outras obras, o sexo tem como pano de fundo a violência. Os filmes de Karim procuram fazer uma mediação entre as promessas tropicais da liberdade erótica do corpo e as necessidades de sobrevivência que quase sempre tomam um rumo violento. Esteticamente, há uma composição entre o contraste das cores e dos filtros, acentuadas em Motel Destino pelo ambiente ao mesmo tempo libertino e clichê, e a excitação da música que, nesta e em obras anteriores, assume os timbres extáticos das festas eletrônicas.
O filme, portanto, não é o retrato de nenhuma brasilidade nordestina profunda e sim a construção de um imaginário mais rico de nuances que desafia a monocultura estética, política, ideológica e amorosa que tomou conta do país, com a recente emergência ressentida dos movimentos de extrema-direita. Este desafio fica claro numa das últimas falas de Heraldo, após um momento paradigmático que traz a reminiscência de uma cena de antiga novela televisiva de Jorge Amado. Retoma-se, em outra chave, mais afetiva, um tema típico da cultura brasileira, a relação entre o clima tropical, com sua exuberância natural, e o transe dos corpos, que inclui também a violência. Trata-se de fazer emergir no cinema de película (com a qual o filme foi gravado) o cromatismo das luzes abundantes e o vigor das formas eróticas do corpo para o enfrentamento da precariedade da existência. Neste filme, em particular, do choque entre o estreito das condições sociais e o excesso da libido saltam as faíscas de mundos possíveis, mais plenos.
Guilherme Preger é carioca, engenheiro e escritor. Doutor em Teoria da Literatura pela UERJ. Autor de Fábulas da Ciência (ed. Gramma, 2021) e Teoria Geral dos Aparelhos (Caravana, 2024). Mantém o blog Resenha Cibernética e faz curadoria do cotidiano diária no Mastodon no endereço @gfpreger@piupiupiu.com.br. Escreve sobre cinema na Diversos Afins desde 2015.