Drops da Sétima Arte I

Por Claudia Rangel

 

Jogo de Cena. Brasil. 2007.

 

 

“For what is a man, what has he got?
If not himself, than he has naugth
To say the things he truly feels
And not the words of one who kneels
The record shows, I took the blows
And did it my way”
(Claude François/Jacques Revaux/Paul Anka – 1967)

 

Eu gostaria de falar especialmente sobre Jogo de Cena, um filme do Eduardo Coutinho que me marcou muito. Talvez porque ele seja um filme sobre mulheres, feito por um homem que possuía a incrível capacidade de ouvir as pessoas para além do que elas dizem. E talvez porque ali eu tenha me identificado profundamente com cada uma daquelas histórias contadas e recontadas por aquelas mulheres. E talvez porque eu seja uma mulher e sinta uma enorme necessidade de entender o que é ser uma mulher estando no mundo. Neste mundo marcado por milhares de anos de dominação masculina, no qual a cada meia hora uma mulher é morta no Brasil (dados do IPEA – Instituto de Pesquisa Aplicada).

Mas o fato é que eu queria falar de Jogo de Cena e revi o filme para lembrar alguns trechos e, principalmente, reencontrar os elementos que nele me impactaram tanto da primeira vez que o vi. E ao revê-lo, com os olhos de releitura e do distanciamento, entendi outra coisa para além do fato de Eduardo Coutinho ser um arqueólogo de almas. Entendi que, na verdade, ele é um desnuda-dor de almas, e que, ao entrevistar uma pessoa (as mulheres de Jogo de Cena ou qualquer outro personagem real), ao mesmo tempo em que ele usa sua capacidade de entrevistador para que o entrevistado se sinta à vontade e abra seu coração, também faz com que o entrevistado, de certa forma, se represente dizendo aquilo que tem a dizer. É um jogo que lembra o poema do Fernando Pessoa: “O poeta é um fingidor, e finge tão completamente, que chega a fingir que é dor, a dor que deveras sente”. Esse é o tal Jogo de Cena, que ele deixa explícito no filme ao colocar em diálogo os depoimentos de mulheres e as representações feitas por atrizes desses mesmos depoimentos.

Para quem não teve oportunidade de ver o filme, nele algumas mulheres são levadas a um palco de teatro e lá, diante de Coutinho e de costas para a plateia vazia, contam suas histórias. São diversas mulheres e diversas histórias que depois são recontadas por diversas atrizes. Para filmar Jogo de Cena, Coutinho usou uma estratégia inusitada num documentário publicando um anúncio com os seguintes dizeres: “Convite. Se você é mulher com mais de 18 anos, moradora do Rio de Janeiro, tem histórias para contar e quer participar de um teste para um filme documentário, procure-nos.” Além do local e horário do teste, acrescido dos telefones da produção, o anúncio nada explicava. Esse convite abre o filme.

O que torna o jogo mais instigante e emocionante é que algumas atrizes são muito conhecidas de nós (Marília Pera, Andréa Beltrão, Fernanda Torres e Mary Sheila), enquanto outras são totalmente desconhecidas. Por isso, em muitos momentos, nós não sabemos se quem está falando é o personagem real ou o fictício (e, às vezes, chegamos a duvidar de que as atrizes estão contando a história de outras e não a sua própria história). Principalmente porque, em alguns momentos, a interpretação parece mais convincente que a narração real da história, e o real e a representação do real se confundem de tal maneira que já não sabemos mais quem conta qual história, pois o que Coutinho deixa claro no documentário é que todas as histórias são narrativas e, como tal, são representações, são “jogos de cena”.

Tentando entender como Coutinho teria chegado a essa técnica tão sua de demonstrar essa tese, procurei rever alguns trechos de outros documentários dele. Revi Santo Forte e Edifício Master, outros dois filmes que me impactaram muito. E por isso a abertura deste texto com um recorte da letra de My Way, música imortalizada na voz de Frank Sinatra, que é reinterpretada pelo Sr. Henrique, um dos moradores do Edifício Master entrevistados para o documentário do mesmo nome, no qual Coutinho dá voz aos moradores de um imenso condomínio de quitinetes em Copacabana. Nós entramos na casa dele guiados pelo Coutinho. E o Sr. Henrique, ao cantar sua música favorita junto com seu ídolo (que canta no CD player), quase chora, se emociona, pois essa é a música da sua vida, o seu resumo pessoal. E ele canta, apesar de não saber cantar, apesar de saber que está sendo filmado. Ele abre essa janela da sua alma para Coutinho e para nós. Coutinho faz isso com a gente: nos faz ver aquele que não veríamos. Aquele que é desconhecido e indiferente. Ele extrai de cada entrevistado o diamante interior que talvez jamais percebêssemos naquele outro que esbarra conosco nas calçadas da vida. Como ele próprio falou ao amigo José Hamilton Ribeiro, “Cada história vale por si. Cada vida vale por si.” E ele nos faz olhar para uma pessoa comum como alguém totalmente singular e especial e nos faz perguntar, como na letra da música My Way: “E pra que serve um homem, o que ele tem? Se não ele mesmo, então ele não tem nada”.

Rever algumas cenas desses filmes talvez tenha me desvirtuado do caminho de uma análise sobre o documentário Jogo de Cena. Mas, na verdade, o que me desvirtuou desse caminho foi o próprio filme, ao me levar a uma reflexão maior sobre a questão da narrativa. A pergunta que Coutinho parece fazer no documentário é: quando falo de mim, quem me diz? Quando uma mulher senta diante de um entrevistador e uma câmera e conta sua história, qual é a história que ela conta? A narrativa, mesmo a pessoal, exige de quem narra um distanciamento da história. Então, cada pessoa se reconstrói a partir da narrativa de sua história. Eu acho que é isso que ele quer demonstrar em Jogo de Cena quando coloca atrizes para reinterpretar as histórias contadas por mulheres anônimas. E, ao fim, acaba tornando essas atrizes também entrevistadas do documentário.

O filme tem camadas que demoramos a perceber, pois elas se sobrepõem e interagem. Na primeira entrevista, por exemplo, a atriz Mary Sheila fala como começou no teatro. Quando ela diz que está fazendo atualmente a releitura do clássico Gota D’Água com o grupo Nós do Morro, Coutinho pede que ela faça a cena do envenenamento dos filhos. E ela faz imediatamente, saindo de si para o personagem com uma naturalidade admirável. E a fala da peça que ela reproduz é uma espécie de introdução para todas as histórias que virão depois. Então, começando o filme com o depoimento real de uma atriz sobre ela própria e finalizando a cena com a mesma atriz representando um texto clássico relido pelo teatro, Coutinho já nos dá a chave do seu documentário. Mas nós não sabemos, a princípio, o que fazer com essa chave, pois logo depois ele nos confunde com o depoimento de uma moça desconhecida, falando sobre sua própria experiência de ser mãe. E amarra esse depoimento ao da atriz Andréa Beltrão, que nós pensamos ser real. Somente quando as falas começam a se repetir (na boca da atriz e da mulher entrevistada) é que entendemos que a atriz está relendo, reinterpretando o que outra mulher diz. Mas ele não deixa que essas reinterpretações sejam apenas simples releituras e tira delas algo pessoal das atrizes, ao conversar com elas sobre as dificuldades de interpretar uma história real. E ele é magistral na técnica da entrevista.

 

 

Porém, mais que um filme de entrevistas e depoimentos reais, Jogo de Cena é um tratado sobre a narrativa. Eu realmente gostaria de ter conhecimento da psicanálise para entender o filme, pois é da narrativa (do que é dito e do que não é) que a psicanálise se alimenta. O documentário, enquanto gênero, também se fundamenta a partir da narrativa. O documentário clássico, porém, constrói sua narrativa sobre um fato real, interpretando esse fato conforme as crenças e idéias do diretor. Coutinho não é um diretor que faz esse tipo de documentário. Ele buscou em todos os seus filmes a narrativa do outro. Em Jogo de Cena, porém, ele próprio questiona essa possibilidade quando desconstrói a narrativa do outro colocando no espelho da atriz a fala de uma mulher real e sua história real.

E voltamos à questão: quem é que me fala quando eu falo?  Em Santo Forte, dona Thereza, que incorpora entidades da umbanda, ao contar sobre a morte da irmã, para em determinado ponto da narrativa, vira a cabeça por cima do ombro e diz algo para alguém que não está ali. Coutinho então pergunta com quem ela está falando e ela responde que está falando com a irmã. Ele pergunta se ela está ali. Dona Thereza sorri e diz que todos estão ali, que em volta deles tem muitas pessoas que não podemos ver. E eles estão sempre falando com ela. Na simplicidade (ou complexidade) de sua crença, dona Thereza traduz o que os linguistas dizem o tempo todo: nós falamos com a língua do outro, nos constituímos na narrativa, que não é nossa, é anterior a nós e nos constitui. E é disso que Jogo de Cena trata. Ao mesmo tempo, não é só disso: é também sobre a dor de viver sendo mulher. E o diretor consegue juntar as duas linhas principais do filme – a narrativa e a dor feminina – quando, na última parte, uma das mulheres pede para voltar, pois queria ainda cantar uma música, começa a cantar a cantiga de ninar “se essa rua fosse minha” e, ao fundo, ouvimos Marília Pêra cantando a mesma canção.

No entanto, ao final do filme, que até então utiliza apenas uma câmera em plano fechado mostrando as entrevistadas e a plateia vazia (com poucas e raras inserções da chegada das mulheres ao palco), Coutinho nos surpreende novamente mostrando o teatro vazio visto do fundo da plateia, com as duas cadeiras vazias no palco. E percebemos que a cadeira que está de frente para a plateia é a dele, o diretor. E é ele quem está narrando uma história para nós.

 

 

Claudia Rangel é jornalista, Mestra em Educação e servidora da UFES (Universidade Federal do Espírito Santo). A fotografia e o cinema são suas fontes de alegria.

 

 

 

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