Drops da Sétima Arte

Por Guilherme Preger

 

Amantes Eternos (Only lovers left alive). Alemanha/Reino Unido/França/Chipre. 2013.

 

Amantes Eternos

 

Amantes Eternos, de Jim Jarmusch, é um filme típico de vampiros. Neste estão presentes muitos dos clichês e signos icônicos que cercam os sombrios descendentes do conde VladDracul, tais como a vida noturna fugidia da luz solar, a necessidade imperiosa desses misteriosos seres para se alimentar de sangue humano, a vida eterna ou a longa juventude a que só pode dar cabo uma bala de madeira.

Jim Jarmusch sempre trabalhou em seus filmes com clichês pops e referências icônicas da cultura de massas mais sofisticada. Seu desejo nesse filme, claramente, não era fazer um filme de vampiros heterodoxo ou inovador, mas sim compor uma alegoria dos tempos terminais, ou como poderíamos chamar mais apropriadamente, do sistema capitalista “tardio”. É, por assim dizer, um filme de “fim de época”.

Adam e Eva (vividos por Tom Hiddleston e Tilda Swinton) – nomes simbólicos – são vampiros aristocratas, casados centenariamente, que vivem em cidades diferentes separadas por um oceano, Detroit e Tanger. Adam está deprimido e Eva sente necessidade de vir a Detroitr e animá-lo. A reunião amorosa do casal é interrompida, no entanto, pela presença inesperada de Ava (Mia Wasikowska), uma vampira junkie que é irmã de Eva. Após uma confusão causada pelo comportamento adolescente e hedonista de Ava, o casal é obrigado a viajar de volta a Tanger, onde se encontram com o velho poeta Christopher Marlowe (vivido por John Hurt), rival de Shakespeare que, sendo realmente um vampiro, simulou sua própria morte há 500 anos, e em nossos dias jaz moribundo escondido na casa de um comerciante de Marrocos.

Assim descrito, o filme parece ter uma narrativa banal e, de fato, como em muitos outros filmes de Jarmusch, não há quase peripécia a acelerar a trama. Quase todos seus filmes são compostos de deambulações erradias dos personagens, perdidos em divagações tediosas ou melancólicas. Desde seu debut, com o aclamado Strangerthan Paradise, que o diretor novaiorquino é conhecido por enfocar personagens em trânsito, porém paradoxalmente em situações que parecem nunca avançar, numa inércia existencial. Em uma de suas entrevistas, o diretor disse que gosta de “filmar a América com olhos de estrangeiro” e é esse deslocamento que gera um efeito “mais estranho do que o paraíso”.

E ninguém melhor do que vampiros, personagens errantes e estranhos por natureza (ou por anti-natureza) para incorporar esse deslocamento existencial. Remanescentes de uma aristocracia que perdeu seu lugar na história, vampiros, a partir do personagem literário de Bram Stoker, tiveram que vestir os hábitos da burguesia ascendente do período romântico. O vampiro literário seria assim a personificação grotesca do burguês que sobrevive literalmente drenando o sangue da classe trabalhadora, como uma sanguessuga.

Na era burguesa, afinal, a figura do vampiro, como a do fetiche da mercadoria, é sobretudo um signo vazio, errante, que atravessa os tempos devendo sua vida e seu valor à imaginação dos outros, como o Nosferatu para o cinema expressionista representava o fantasma das pestes sociais ainda não assimiladas do cenário do entre-guerras, como o surgimento pavoroso e intuído do nazismo.

E é com esse signo vazio que Jarmusch explora a figura do vampiro trazendo-o para um mundo do capitalismo globalizado, onde os cidadãos burgueses podem se comunicar mesmo em cidades afastadas por oceanos, onde as compras podem ser feitas instantaneamente por cartão de crédito, como as passagens que Eva adquire para viajar aos Estados Unidos, e onde a qualidade do sangue decaiu assustadoramente, por causa de doenças, drogas e alimentos químicos ingeridos à profusão, para desespero dos vampiros.

Os personagens Adam e Eva em cena de Amantes Eternos - Foto - divulgação

Os personagens Adam e Eva em cena de Amantes Eternos / Foto: Divulgação

 

Eva vai aos Estados Unidos reanimar Adam, que está à beira de um ato suicida. O personagem de Hiddleston é músico e poeta e não suporta a decadência do rock e o processo de digitalização sonora. Sua Detroit, por sua vez, é uma cidade em decadência e em processo de esvaziamento, cheia de montadoras de automóveis inutilizadas.Num passeio noturno em um carro antigo, Adam mostra a Eva, com certa nostalgia,as fábricas abandonadas das grandes montadoras. A cidade é o símbolo moderno do desaparecimento do trabalho na era do capitalismo financeiro e da virtualização das relações produtivas e do consumo.

Aristocrata vindo de outras eras, Adam menospreza os mortais humanos a quem chama de Zombies. O Zumbi sempre foi a antítese do vampiro. Zumbis são os mortos-vivos, enquanto um vampiro é o vivo-morto. Vampiros são burgueses que pensam que são aristocratas. Zumbis são proletários que vivem como trabalhadores robotizados, sem autonomia e consciência. Adam tem simpatia, no entanto, por Ian, um típico humano-zumbi que não trabalha, mas vive do tráfico de todo o tipo de artigo do mercado negro. Assim, como não há trabalho nas fábricas de Detroit, seus habitantes são obrigados a se virar em pequenos negócios clandestinos. A aproximação entre Adam e Ian – que venera o vampiro – trai o lado burguês do primeiro.

Eva, vivida por uma magneticamente pálida Tilda Swinton, é uma vampira que não tem outra ocupação a não ser recuperar a energia vital e criativa de seu marido. Há um problema de gênero nessa situação, como se mulheres, vampiras ou não, estivessem destinadas a serem fontes periféricas da criatividade de seus cônjuges. Mais interessante é sua irmã Ava, que tem uma presença passageira, mas decisiva na trama. Odiada por Adam, ela é uma vampira totalmente junkie, consumista, hedonista e ociosa, cujo vício e sede irrefreável acabam por trazer o desastre para o casal e particularmente para Ian.

Adam e Eva retornam a Tanger, uma cidade do terceiro mundo, para recuperar a vitalidade perdida, o que é um paradoxo para vampiros, que vivem eternamente como mortos. Eles presenciam a morte derradeira de Christopher Marlowe, envenenado por sangue contaminado, que representa para eles o fim de toda uma época de fineza e beleza (e ele confessa ser o real autor das peças de Shakespeare). Em muitos filmes do gênero, vampiros desejam ardorosamente a mortalidade de seus amados, pois só em face da finitude é que a vida recebe seu sentido. Mas a decadência espiritual do mundo na banalidade burguesa de nossos dias virtuais elimina toda promessa de sentido.

Numa conversa em um de seus “passeios noturnos”, Adam diz a Eva que 80% do corpo humano é feito de água e pergunta quando terminarão as guerras do petróleo para começarem as guerras pela água. Lutar pela água seria ainda uma luta por algo vital e não mais pela morte e pela banalidade. Num pequeno cabaré de um beco estreito de Tanger, eles ouvem a belíssima canção de uma cantora libanesa (Yasmine Hamdan, cantando “Hal”). A cantora sussurra em árabe que “eu não tenho solução”. Adam dedilha um banjo medieval comprado por Eva com o resto do dinheiro que possuíam e veem um casal marroquino se beijar apaixonadamente. Os filmes de Jim Jarmusch são reconhecidos não apenas pela bela e bem selecionada trilha sonora, mas por serem realizados e idealizados como canções visuais. E este filme-canção diz em algum refrão insistente que não há outra escolha a não ser persistir no amor, pois somente aos amantes será permitido viver e sobreviver.

 

Guilherme Preger é engenheiro e escritor, autor de “Capoeiragem” (Ed. 7Letras) e organizador do Clube da Leitura da Baratos da Ribeiro.

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