Drops da Sétima Arte

Por Guilherme Preger

 

Fala Comigo. Brasil. 2017.

 

 

Fala Comigo, primeiro longa de Felipe Sholl, foi o vencedor do Festival do Rio de 2016.  Antes deste, Felipe foi roteirista de alguns filmes como Campo Grande e Histórias só existem quando lembradas, além da direção de alguns curtas.

O tema do filme tem tradição no cinema. É a iniciação sexual de um jovem adolescente (de 17 anos) com uma mulher madura (de 43). É só pensar em A Primeira Noite de um Homem (The Graduate, Mike Nichols), O Verão de 42 (Robert Mulligan) e o grande clássico A Moça com a Valise, de Valerio Zurlini.

No cinema brasileiro, no entanto, é um tema incomum.  Há alguns filmes com o par trocado, sobre a relação entre uma moça e um homem mais velho, como À Deriva, de Heitor Dhalia, e A Menina do lado, um clássico de Alberto Salvá. No cinema brasileiro, a referência mais óbvia para um roteiro entre um jovem, no caso uma quase criança, e uma mulher mais velha é obviamente Pixote, de Hector Babenco, um filme com que Fala Comigo tem pouco a ver.

O longa de Felipe Sholl se parece mais com Casa Grande, um filme recente que também apresenta a iniciação sexual de um jovem de classe média carioca. No entanto, a aproximação entre os filmes se dá mais no ambiente de classe e na relação desencontrada entre jovens e pais dessa classe. Outros filmes recentes como o carioca Mate-me, por favor e Que horas ela volta? também apresentam o mesmo conflito.

É interessante observar que esses filmes contemporâneos abordam conflitos entre pais e filhos. O gap geracional é um tema ainda mais frequente da história do cinema. No entanto, um senso comum nos diz que a distância entre as gerações tem diminuído, que pais e filhos cada vez mais compartilham de mundos mais próximos e que isso se deve a uma infantilização dos adultos e certo amadurecimento dos jovens.

Fala Comigo partilha de algumas preocupações etárias e sociais com todos esses filmes, mas é diferente e singular entre eles. A história é sobre Diogo (vivido por Tom Karabachian), rapaz em idade escolar, músico, e Angela, (vivida magistralmente por Karine Teles) mulher madura, traumatizada por sua recém-separação, de profissão indefinida. Ela é atendida em análise por Clarice (Denise Fraga), psicanalista, mãe de Diogo. O casamento de Clarice com Marcos (Emílio de Mello) também está em crise de separação. Além desse quarteto, também há Mariana, a pequena irmã hipocondríaca de Diogo.

Diogo alivia sua tensão sexual adolescente telefonando anonimamente para as clientes de sua mãe, cujos contatos obtém clandestinamente, e se masturbando silenciosamente. Num de seus telefonemas, ele reconhece que Angela está próxima a uma tentativa de suicídio e a socorre. O romance entre os dois começa a partir desse fato e se desenvolve a partir daí sem resistências entre o casal. Os obstáculos virão de fora.

 

Denise Fraga e Emílio de Mello em cena / Foto: divulgação

 

Diferentemente de Casa Grande e Que horas ela volta?, o filme de Sholl parece não se importar em assinalar e confrontar a diferença de classes, um tema bastante frequente no cinema brasileiro contemporâneo. O que não quer dizer que a questão de classe não esteja presente. Todo o filme se passa em interiores de apartamentos de classe média da zona do sul do Rio de Janeiro e não tem praticamente externas. Numa de suas cenas iniciais, vemos a família em volta da mesa jantando. Há pouca comunicação entre pais e filhos enquanto comem. A estranheza dessa cena não é propriamente o silêncio, mas a persistência desse hábito de jantar em conjunto, em volta da mesa, com as posições parentais e filiais assinaladas, uma situação cada vez mais rara na vida social, porém que permanece como um índice de classe. Esse índice também transparece na pouca preocupação econômica de todas as personagens.

O fato é que questões sexuais, distâncias geracionais ou conflitos de classe parecem não ser exatamente o motivo principal de Fala Comigo. Em particular, a sexualidade do jovem Diogo e sua relação com uma mulher mais velha são provavelmente mais um Mcguffin do roteiro, apenas um elemento de atração. A questão principal parece ser mesmo a dificuldade de comunicação de todos com todos. Essa dificuldade está estampada, obviamente, no próprio título do filme. Uma dificuldade que se expressa mais no escutar do que no falar.

Ao se concentrar no núcleo familiar burguês, o filme revela sua temática psicanalítica. Não apenas a mãe de Diogo, Clarice, é psicanalista e Angela é sua analisanda, mas o consultório é na própria casa de Clarice. Ou seja, o lar de Diogo também serve de consultório de análise. Assim, a trama psicanalítica enreda-se em seu ambiente preferido: o lar, os conflitos edípicos, a torrente da libido e as rotas de fuga do desejo. Mas seria um erro considerar que Diogo encontra em Angela uma substituta desejável para o lugar de sua mãe. A fuga aqui não é tanto do sufoco familiar, mas da própria psicanálise.

Assim, quando Clarice acusa Angela de querer substituir o filho que ela nunca teve por Diogo, essa acusação violenta e injusta se dá dentro de um perfeito enquadramento psicanalítico. Angela só pode lhe responder que ela não está entendendo nada como psicanalista, assim como não está entendendo seu filho, que não é um cliente. Numa discussão cara a cara com sua mãe, Diogo se recusa acertadamente a sentar no divã.

 

Karine Teles e Tom Karabachian protagonizando Fala Comigo / Foto: divulgação

 

Fala Comigo é, portanto, um filme de crítica à psicanálise, mas esta crítica é realizada “por dentro” da obra. Uma das canções do filme, Freud sits here, de Letuce é uma sugestão sofisticada dessa relação. A crítica do filme se faz por um deslocamento ou uma inversão. O psicanalista também precisa sentar no divã e ser ouvido. Daí a ambiguidade do título: o importante não é falar, mas ter uma oportunidade de escuta. A escuta pode ser silenciosa, como na cena em que pai e filho ouvem a canção compartilhando um fone de ouvido. Ela também está presente na relação entre Diogo e sua irmã menor. Apenas ele realmente é capaz de ouvi-la e aliviar sua hipocondria precoce sintomática.

E assim também o próprio relacionamento sexual entre Angela e Diogo, nunca explícito, corre sem grandes obstáculos ou impedimentos internos, pois não é o essencial. Há mesmo uma desdramatização da relação entre o casal. Os obstáculos, como o inferno, são os outros.  O que é importante é que a relação aconteça entre quem pode se entender e se comunicar. Ambos se ajudam mutuamente para tomarem distância de seus próprios lugares. Num momento tão difícil para o país, são poucos os filmes que se dão o direito a uma utopia.

 

 

 

Guilherme Preger, carioca, é engenheiro e escritor. É autor de Capoeiragem (7Letras/2003) e Extrema Lírica (Ed. Oito e Meio/2014), e um dos organizadores do coletivo literário Clube da Leitura no Rio de Janeiro, tendo participado como autor e editor das três coletâneas lançadas pelo grupo. Atualmente, é doutorando em Teoria Literária da UERJ, onde realiza pesquisa sobre a aproximação entre Literatura e Ciência. Escreve sobre cinema desde 1995, quando recebeu um prêmio de crítica literária do Grupo Estação e do Jornal do Brasil num ensaio sobre o filme Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha.

 

Clique para imprimir.

Comente

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *