Drops da Sétima Arte

Por Guilherme Preger

 

Esplendor. Japão/França. 2017.

 

 

Esplendor (Hikari) é o filme da diretora japonesa Naomi Kawase que ganhou prêmio do Júri, no festival de Cannes de 2017. É a terceira vez que a diretora foi premiada no festival. Em 2007, com Mogari no Mori (A floresta dos lamentos) ela ganhou como melhor filme. Em 1997, com Suzaku, teve o prêmio de melhor diretora. Ela é pouco conhecida do público brasileiro, porém em 2011 o CCBB fez uma retrospectiva de sua obra, que conta com vários documentários.

Seus filmes são delicados e intimistas. Uma das características principais de sua obra é explorar a tênue separação entre documentário e ficção. Seus filmes ficcionais muitas vezes são filmados como documentais e com frequência atuados por atores não profissionais.

Esplendor conta a inusitada história de Misako (vivida por Ayame Misaki), uma jovem moça responsável por escrever legendas de filmes para cegos. O filme de Kawase se inicia por cenas de Misako descrevendo para alguns cegos que avalizam seu trabalho as cenas de um filme projetado. Seu trabalho é uma experiência para levar o cinema para deficientes visuais e, com um pequeno grupo de teste escolhido, Misako verifica se sua versão é adequada para esse público.

 

Ayame Misaki interpretando a protagonista Misako / Foto: divulgação

 

Descrever um filme para cegos não é exatamente uma tarefa fácil. Após a projeção, os cegos avaliam se o filme foi bem compreendido por eles, se sua descrição foi suficiente para levar uma experiência cinematográfica aos deficientes. Misako então ouve muitas críticas de seu pequeno público de teste. Sua descrição esteve aquém da experiência de vozes e ruídos percebidos pelos deficientes. Um deles, Nakamori (vivido por Masatoshi Nagase, ator que também participa de Patterson, de Jim Jarmusch), fotógrafo que está perdendo a visão, avalia que Misako se perdeu no excesso de detalhes, distraindo a atenção dos cegos, e perdendo o essencial da obra cinematográfica. Misako tem então de refazer seu trabalho.

Assim, o filme aborda a irredutível diferença entre o dizer e o mostrar: as palavras e as imagens nunca podem se ajustar perfeitamente. O trabalho de Misako está condenado a uma insuperável insatisfação, que provoca uma enorme angústia na jovem. Ora sua descrição entra em pormenores dispensáveis, prejudicando a concentração do público, ora sua contenção impede a vivência do filme pelos cegos por falta de informação.

Mas a situação é ainda mais sutil do que esta. Numa das cenas do filme, Misako introduz uma interpretação subjetiva de uma cena, o que provoca protestos de seu público por estar induzindo uma leitura. Quando remove sua interpretação, então é o fotógrafo que lamenta que a cena tenha se tornado tão vazia. É nesse momento que Misako responde que talvez lhe faltasse imaginação, o que o faz deixar o teste indignado e ferido, provocando um conflito entre os dois.

O que está em jogo no filme delicado de Naomi Kawase são os modos de sensibilidade que uma obra desperta, que tipos de afetos ela movimenta. A questão não está se uma descrição verbal jamais nos dê a verdade de uma imagem, ou quantas palavras são necessárias para descrevê-la. O problema está no mistério da imaginação estética, no seu poder de não parar na imagem, mas sempre ir além dela. Não é que as palavras não se adequem às imagens, mas que a própria imagem não cabe em si mesma. Esplendor tem um filme dentro de um filme. O filme que assistimos é uma indagação sobre o que significa ver um filme. Com olhos abertos ou fechados.

Uma das características da câmera de Kawase é seu ângulo fechado, seu foco curto. Vemos detalhes dos rostos e dos corpos, recantos de salas e cantos, folhas na floresta e réstias solares. Vemos sempre as partes dos lugares, mas não o espaço todo. Por um lado essa agudeza do foco simula uma restrição visual que se aproxima da baixa visão do fotógrafo e dos outros cegos. Por outro, a câmera fechada responde a uma poética da intimidade que é uma das marcas mais pessoais da estética de Naomi Kawase.

 

Matoshi Nagase na pele do personagem Nakamori / Foto: divulgação

 

Assim, o que essa ou qualquer obra estética nos dá, são traços incompletos que não descrevem totalmente um mundo. São fragmentos de mundos que precisam ser recompostos. Por isso é que existe tanta permeabilidade entre o documentário e a ficção. Por vezes nos esquecemos de que nossa percepção é sempre parcial, que para ver algo é preciso deixar de ver outro algo. Toda percepção é sempre perspectiva, isto é, parcial e incompleta.

A poética da intimidade de Naomi Kawase é, portanto, uma estética de ângulos fechados, de proximidade, em que as visões panorâmicas e totalizadoras não entram. Seu primeiro documentário chamava-se justamente: “Só foco no que me interessa”. Um cinema do foco e da subjetividade.

Esse espaço de intimidade torna-se uma zona de indiscernibilidade entre ficção e realidade, pois cada fragmento observado deve levar à recomposição de um mundo. Por isso, numa cena marcante de Esplendor, quando Misako está perdida na floresta à procura de sua mãe desmemoriada, ela se relembra de uma experiência vivida com seu pai quando era criança naquele mesmo bosque, que logo a seguir é relembrada por sua mãe que não a viveu, mas possivelmente tomou conhecimento da experiência por palavras do pai ou de Misako. Assim, a jovem entende que as palavras são também elas fragmentos de mundos.

Por isso, a descrição de uma cena é também um traço que nos conduz a outro mundo, ou a outro traço. Esplendor, com seus jogos de luzes e sombras, nos conta a história de uma moça japonesa que descobre que cada palavra pode ser um projétil capaz de abrir uma fenda na superfície de uma vida por onde um mundo pode furtivamente penetrar através de um feixe oblíquo de luz.

 

 

Guilherme Preger (1966) é escritor e engenheiro, natural do Rio de Janeiro. É autor de Capoeiragem (7Letras, 2003) e Extrema lírica (Oito e Meio, 2014). É um dos organizadores do Clube da Leitura. Participou como autor e editor das quatro coletâneas do coletivo. É mestre em Literatura Brasileira e doutorando em Teoria Literária pela UERJ, com pesquisa sobre as relações entre ciência e literatura.

 

 

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