Por Fabrício Brandão
Tatuagem. Brasil. 2013.
O ano era 1978. No Brasil, experimentava-se um cenário de ditadura ainda inglório e obtuso. Nem o que se convencionou chamar de “abertura lenta e gradual” serviria como motivo para amenizar o efeito altamente negativo que tal estado de coisas causou à nação. A cidade de Recife abrigava em seu seio tradicionalmente cultural um coletivo de seres impactados pelas vias da arte. Em seu microuniverso, pautado por uma expressão marcantemente libertária, a trupe do cabaré “Chão de Estrelas” afirmava-se como sendo muito mais do que um espaço de expressão artística.
Comandados por Clécio Wanderley, personagem vivido por Irandhir Santos, os artistas daquele espaço ousavam ser algo além do seu ofício natural. Com seus espetáculos críticos e sarcásticos, intentavam resistir a um tempo no qual as liberdades individuais há muito estavam minadas. Diga-se de passagem, essa noção de liberdade possui uma dimensão especial, pois vai tocar no delicado terreno das amarras do corpo e da mente.
Olhando por esse prisma inicial, Tatuagem até poderia aparentar ser um filme motivado pelas torpezas da ditadura militar oriunda do Golpe de 1964. Mas logo fica claro que esse não é o mote da obra. O período negro de nossa história é mero coadjuvante diante da necessidade que a produção traz de evocar a temática da liberdade em sua acepção mais vasta possível. A um só tempo, o filme engendra temas complexos como homossexualidade, amor, crítica social e política, dentre outros.
O romance que se estabelece entre Clécio e Fininha (interpretado por Jesuíta Barbosa) opera aproximações entre dois mundos fundamentalmente opostos. Enquanto Clécio representa um símbolo de irreverência e contestação, utilizando-as como ferramentas de difusão artística, Fininha, um jovem soldado do exército, traduz um universo até certo ponto pueril, cuja inocência aponta para a afirmação de suas descobertas pessoais em meio aos primeiros passos da fase adulta. Quando se encontram pela primeira vez, os dois correspondem à paixão numa fluidez de entrega que só respeita à lei do desejo irrefreável. A questão da homossexualidade é muito mais uma aspiração libertária e genuína do que qualquer outra coisa. Longe de trabalhar com rótulos, o filme explora a relação de amor entre dois homens da forma mais natural possível, sem levantar inúteis tensões de gênero.
De modo especial, Tatuagem é uma obra que se impõe pelo seu caráter fortemente teatral. Assim, os espetáculos do “Chão de Estrelas” parecem transbordar para o mundo circundante, instaurando uma estética muito voltada para os apelos da representação. Nesse ínterim, vida e arte se confundem e proporcionam a compreensão de mundos através duma atitude encenada da existência. E o que parece favorecer esse ambiente de criações é justamente o espírito de comunidade que permeava a trajetória do grupo. Todos eles moravam num mesmo casarão do Recife, compartilhando os territórios de uma verdadeira república das artes.
Dirigido por Hilton Lacerda, a obra merece destaque por enaltecer o saber e o sabor da experiência coletiva das sensações. Os movimentos de câmera são soltos e mergulham nos ambientes de forma a conferir um sentido de naturalidade aos cenários abordados. A própria câmera, ao flagrar as ações teatralizadas, deixa de ser um corpo estranho e invasivo para se tornar um componente intrínseco da obra. E é justamente nesse ponto que Tatuagem revela um comportamento híbrido quando propõe uma valiosa interposição entre teatro e cinema. O resultado dessa zona de convergência aparece muito bem pontuado pela forma como a narrativa, nalguns momentos, é dividida em esquetes.
Outro ponto forte do filme é a utilização do corpo como instrumento máximo de representação, seja sob a forma de resistir à ordem sócio-política do contexto, seja na afirmação das potencialidades de construção dos diálogos da arte. As apresentações do “Chão de Estrelas” serviam como um painel vivo para as expressões corporais de seus artistas, sobretudo porque simbolizavam um rico cenário de expansão da consciência. Para os membros da trupe, o ato de estar no palco significava ir mais além duma aparição exaustivamente ensaiada. Servia também como uma perspectiva de integração ao mundo através de um prisma notadamente ideológico. Tudo isso bem longe de qualquer atitude panfletária.
Por se tratar de uma produção na qual a expressão teatral é traço abundante, era de se esperar que o trabalho do elenco tomasse o centro das atenções. E isso ocorre com a maioria dos atores. No entanto, é impossível não mencionar as destacadas atuações de Irandhir Santos e Jesuíta Barbosa, na pele de protagonistas cujas sinas pessoais sustentam densamente os polos de tensão principal da história. Outro ator que se destaca por sua relevante aparição é Rodrigo García, ao encarnar o espalhafatoso personagem Paulete.
Com seu enredar de delicadezas, Tatuagem é uma obra atemporal, sobretudo porque privilegia o exercício ativo e consistente do pensamento. Dentro de nós, é bem provável que tenhamos alguma dificuldade em saber lidar com toda a vastidão de um horizonte que sempre se delineia complexo, o da liberdade. E isso o filme nos lembra a todo o tempo. Então, resta a pergunta: se marcadas a ferro e fogo, até onde nos levam nossas aspirações e desejos?