Por Larissa Mendes
OTTO – THE MOON 1111
Segundo místicos, o “Portal 11:11” foi aberto em 11/01/1992 e teve seu ciclo por um período de 20 anos. Concebido como uma lacuna ou ruptura entre dois mundos, este portal energético estaria ligado ao conceito de sincronicidade, de Jung. Entusiasta de tal filosofia cabalística a qual tem como preceito a coincidência desta combinação numérica (principalmente em relógios digitais), o compositor pernambucano Otto – que possui inclusive uma tatuagem dos dígitos nos dedos – lançou no final de outubro (o álbum chegou às lojas mais precisamente em 11/11) seu mais novo registro de estúdio. Cercado de simbolismos, definitivamente The Moon 1111 é um disco conceitual. Influenciado pelo “bombeiro incinerador de livros” Guy Montag, protagonista do filme Fahrenheit 451 (1966), do cineasta francês François Truffaut, o quinto álbum solo do artista mescla música [pop]ular brasileira com a psicodelia de The Dark Side of the Moon (1973), do Pink Floyd e o afrobeat de Fela Kuti, músico nigeriano que Criolo nos ordenou escutar em Mariô.
Com uma discografia que transita por diversos estilos, do eletrônico à MPB, do manguebeat ao romântico, a verdade é que Otto sempre foi um transgressor de ritmos (não à toa a banda que o projetou como percussionista atende pelo nome de Mundo Livre S/A), que o digam Samba Pra Burro (1998), Condom Black (2001), Sem Gravidade (2003) e Certa Manhã Acordei de Sonhos Intranquilos (2009). Ancorado pelos músicos Fernando Catatau (Cidadão Instigado), Dengue e Pupillo (Nação Zumbi), que assumem respectivamente guitarra, baixo e bateria e a co-autoria em diversas canções, o álbum tem a produção também assinada pelo baterista da Nação e conta ainda com a participação do multifacetado Kassin. Figurando em várias listas de melhores discos de 2012, The Moon 1111 não tem analogia imediata com nenhum de seus trabalhos anteriores (seria cada álbum o fechamento de um pequeno ciclo?) e, apesar do título lunar é, até então, sua obra mais ensolarada. Gravado entre Peixinhos e São Paulo, o álbum mescla sonoridades orgânicas e experimentais, num paralelo entre a periferia afro (“qualquer favela carrega a África”, disse certa vez o cantor) do Recife e a cosmopolita terra da garoa.
Nos primeiros acordes de Dia Claro, canção que abre The Moon 1111, um Otto que parece saído da Jovem Guarda lamenta em off: ‘e pensar que sonhar era só viver/e pensar que amar era só se perder’, para logo desembocar num grito de libertação (era um sofrimento, um tormento, um sentimento que acabou!). A regravação de A Noite Mais Linda do Mundo – autoria de Donizete e famosa na voz de Odair José nos anos 70 – mantém a tônica piegas que permeia todo coração apaixonado. O primeiro single do álbum, a radiofônica Ela Falava – tecnopop oitentista que traz nos vocais a discreta participação da atriz Tainá Muller – parece evocar lembranças peculiares desse tal amor não-linear documentado no álbum. Na sequência, o candomblé eletrônico Exu Parade brinca com a sonoridade do título e eterniza o bordão populesco ‘chupa que é de uva’, presente na música homônima da banda Aviões do Forró. Já The Moon 1111, faixa que dá nome à obra, tem um groove regional que já acompanhava o músico em seu elogiado disco anterior.
A segunda metade do álbum traz Selvagens Olhos, Nego!, homenagem ao rapper paulista Sabotage, morto em 2003. Composta há quase 10 anos, a canção conta com os vocais da jovem cantora paraense Luê Soares nos belos versos ‘a vida bate calada, desafogada, bota pra valer/ensaiou o ano inteiro e por derradeiro, escorreu pelas mãos, entre os dedos’. Se HDeus flerta com uma espécie de disco rígido divino em clima psicodélico, Miss Apple e Zé Pilantra tem batuque e refrão incisivos (na vida tudo clareia/na vida tudo se apaga). Talvez a mais bela canção fique a cargo das cordas de O Que Dirá O Mundo, inspirada parceria com Lirinha (extinto Cordel do Fogo Encantado), onde declara: ‘eu divido contigo minha angústia e o meu pão’. A ousada DP (gíria para dupla penetração) encerra o álbum celebrando o erotismo. Ao mesmo tempo em que Otto visita uma estética retrô-futurista, as 10 faixas de The Moon 1111 confirmam sua singularidade artística e apontam para “um novo começo de era”, onde todo aparente cenário caótico é transformador e revolucionário. Se ‘o melhor da vida é quando a vida se acaba’, não podemos dizer o mesmo sobre o álbum. Bora lá decorar o conteúdo desta obra.
(Larissa Mendes é dona de ouvidos lusco-fuscos e tem na Diversos Afins seu portal particular)