Gramofone

Por Fabrício Brandão

GUI AMABIS – MEMÓRIAS LUSO AFRICANAS

 

 

 

Reúna toda a sorte de sentimentos que possam tecer um mosaico de válidas lembranças. Em seguida, junte boas doses de afetos, algumas fotografias retidas na mente e outros ensinamentos impregnados do sempre útil tempo das escutas. Antes de cerrar o baú de sentidos múltiplos, não se esqueça de colocar, por entre as vestes embaladas do corpo, medidas abundantes de boas sonoridades. Depois que tudo estiver pronto, mire detidamente o tecido estampado e vivaz que envolve o todo organizado. Então, é partir para o universo paralelo, onde cenários abusam de colorir memórias.

Quem lê tamanha alegoria, certamente construirá o ambiente que lhe parecer melhor. E o segredo é não ter receita para perceber as coisas sublimes da vida. Assim nos diz o belíssimo primeiro trabalho solo de Gui Amabis. De início, é imperativo dizer que estamos diante de um disco cênico, no qual as imagens se multiplicam a cada som ou voz expelidos. Com isso em mãos, ou melhor, nos ouvidos, tudo ganha mais vigor e força, principalmente pela forma cuidadosa com a qual o músico compartilha conosco parte substancial de sua história.

Memórias Luso Africanas é um denso e contemplativo percurso pelas veredas familiares de Gui Amabis, tecendo um rico álbum de imagens que derivam das histórias construídas por avós, pais e outros entes queridos do artista. A mescla das tradições de dois povos, como o título sugere, ajuda a consolidar um espaço de sonoridades repleto de signos diferenciados, todos eles movidos pela poesia contida na sucessão dos anos vividos.

A costumeira característica instrumental sempre muito viva de Gui só reforça o caráter imagético do disco, transportando quem ouve para o local exato onde os instantes rememorados acontecem. É pensar numa ópera moderna e depois imaginar que cada faixa encerra um momento que jamais se perderá no turbilhão do tempo. Diante disso, não fica difícil entender por que canções como Dois Inimigos, Orquídea Ruiva, Sal e Amor, Doce Demora, O Deus que Devasta Mas Também Cura e Para Mulatu retratam com precisão e delicadeza um sentimento de gratidão à vida.

O que torna o conjunto da obra mais valioso ainda é ver ali, desfilando suas vozes e energias, artistas do quilate de Céu, Criolo, Tulipa Ruiz, Dengue e Lucas Santtana, todos eles bastante envolvidos numa atmosfera feita de luz e som. E a rica bagagem musical de Gui Amabis, sobretudo na perspectiva da criação instrumental, confere uma dimensão especial ao cd, tendo como norte uma seleção de repertório com traços devidamente aguçados de sensibilidade. Materializar sentimentos e outras tantas percepções derivadas da alma é a virtude maior encontrada por aqui. Em meio ao ato de recordar, saber-se vivo é, antes de tudo, compreender o que está por trás de nossas origens.

 

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