Por Larissa Mendes
LINIKER E OS CARAMELOWS – REMONTA
Aos 21 anos, Liniker – que poderia ser nome artístico, mas é legítimo, em tributo ao ex-jogador de futebol inglês Gary Lineker – é um conceito libertário. Longe dos pré-fabricados que se aproximam da identidade de gêneros para angariar votos ou likes, a autenticidade do seu grave em lábios de batom, bigode e vestes femininas fazem dele um artista único. Talvez Platão identificasse em criador e criatura o denominado [duplo] dualismo psicofísico, dois corpos e duas almas habitando o mesmo ser e os mesmos versos. Mesmo que sua figura estética não usasse qualquer artifício, em algum momento sua voz ligeiramente rouca nos arrebataria. E arrebata, deslumbra, fascina. Tim Maia, do alto do céu do soul, deve dar o aval e liberar o tal ‘dançar homem com homem e mulher com mulher’, de Vale Tudo, à trupe formada em Araraquara (SP) há quase 2 anos.
Nascido em família de músicos, Liniker desabrochou artisticamente após flertar com a cena teatral, o que talvez explique sua grandiloquência no palco. O sucesso do EP Cru (2015) fez o cantor percorrer o Brasil e conquistar o Youtube com mais de 5 milhões de visualizações de suas performances. Remonta, primeiro álbum de sua banda, lançado em setembro e disponível nas principais plataformas digitais, traz arranjos refinados ao universo do soul e da black music. As 13 faixas da obra são resultado de 5 anos de composições e experimentos ao vivo, muitas delas conhecidas do público que o acompanha. Aliás, o disco contou com financiamento coletivo para sua produção e ultrapassou a meta pré-estabelecida. Impossível ficar passivo frente ao fenômeno Liniker de ser/cantar.
Após uma breve Intro de vinte e poucos segundos que aproxima o clima épico dos shows para o registro de estúdio, a circense Remonta (como se não bastasse a guerra também/de te ver todo dia, meu bem/tem o dissabor dessa ferida, tem/que germina na pele e insiste em ficar) abre o álbum como uma espécie de epílogo do que está por vir. Prendedor de Varal (enquanto você prometer e eu acreditar/serão só manhãs, um dia, um meio tom) – que faz referência à Chocolate, do eterno síndico – também presente nas apresentações ao vivo, deixou de ser bossa para ganhar ares de funk. Se a dualidade de Lina X (a personalidade dela era um tanto dividida/parece Poliana/querendo o que é de Frida/queria a parte outra da metade/o todo, o tudo, a casualidade) vai além letra, a primaveril Sem Nome, Mas Com Endereço – que tem o piano e a sanfona de Marcelo Jeneci – garante um dos momentos mais líricos do álbum. Enquanto o blues Tua (são cinco versos, seis ou mais/que me fazem querer gritar/tiro a roupa com um riso acanhado/meu bem, me chame de tua) envolve mais que os turbantes do músico, o bolero Você Fez Merda (você fez merda ao dizer que não me ama/depois da transa que eu dei pra você) contrasta a letra divertida com a profundidade vocal e sonora, numa espécie de dueto entre Maria Bethânia e Cauby Peixoto.
Das três canções presentes no EP dispostas ao longo do disco, a poética Caeu (dava tanta coisa, dava nó de nós/de nós, de eu) foi a que menos sofreu alterações. Se a carro-chefe de Cru, Zero (a gente fica mordido, não fica?/dente, lábio, teu jeito de olhar) perdeu o romantismo e ganhou intensidade, Louise du Brésil recebeu o saxofone de Thiago França (Metá Metá) e um groove altamente dançante. Funzy, única canção instrumental, reforça que Liniker tem mais que uma banda de apoio e apresenta toda a grandeza dos Caramelows, composta por: Renata Éssis (backing vocal), Márcio Bortoloti (trompete), Rafael Barone (baixo), William Zaharanski (guitarra) e Péricles Zuanon (bateria). Vale lembrar que na metade do ano o grupo sofreu a perda da backing vocal Barbara Rosa, vítima de câncer. A radiofônica BoxOkê – primeiro single liberado –, com introdução que lembra trilha de seriado de ação, tem a participação do grupo Aeromoças e Tenistas Russas e da cantora Tássia Reis, e aborda o “empoderamento das minorias”. A balada cênica Ralador de Pia tem parceria de Tulipa Ruiz e encerra Remonta em ritmo dramático.
Em suma, Liniker – que fisicamente lembra Luiz Melodia na juventude – e sua obra dialogam com dualidades e pluralidades: é o ‘homem feminino’ de Pepeu Gomes que versa sobre o [des]amor e suas vertentes. As influências da sonoridade, definida por ele como MPB (Música Preta Brasileira), mesclam samba-rock, partido-alto, soul e rap e seu discurso aborda a desconstrução do gênero sexual. É música com embalagem, conteúdo e contexto. Se hoje você está na fossa, amanhã você coloca seu melhor vestido e dança até lacrar o dia. E afinal, o que é a vida, senão um constante remontar-se?
Larissa Mendes promete exercitar diariamente a Bênção do Lacre.