Por Daniela Galdino
Rafique Nasser – Arado
Ventos de dentro, quando nascem e tomam corpo de gente, ignoram contenções. Precisam soprar e dançar nos quintais dos dias, das noites e das madrugadas. Precisam varrer emudecimentos, rodopiar nos terreiros de que somos feitas/os, acordar o chão e lançar nuvens de poeira ocre-vermelho-cobre no mundo. Esses ventos são abalos necessários que incham de vida a arte e de arte a vida; só têm significância se sentidos por outres também atravessades por dentro (esse espaço ainda nem tanto conhecido) – cada qual ao seu modo de intensidade(s).
Ventos profundos e dançadores têm espalhado para outras paragens o universo sonoro de Rafique Nasser. Nascido e vivido em Valença (território cultural do Baixo Sul Baiano), com seus 19 anos, esse jovem negro do quintal de si dialoga bela e intensamente com o vasto acervo do cancioneiro nordestino setentista: Fagner, Ednardo, Orquestra Armorial, Ave Sangria, Lula Côrtes e Zé Ramalho manifestados nos poderes do invisível em Paebirú (e tantas outras possibilidades musicais daquela década vibrante). Também Rafique Nasser acolhe em si outras cantorias no que há de mais esperançoso, logo afrontoso: quem sabe um Dércio Marques na sua potência sonhática, por exemplo. Esses sobrevoos de Rafique reverberam aqui e acolá no EP Arado (2017).
Num ano bastante ebulido no cenário musical baiano, Arado, primeiro registro sonoro de Rafique Nasser, ficou entre os dez finalistas na votação de melhor disco de 2017, organizada pelo site El Cabong. Muito bem produzido no interior da Bahia, o EP reúne compositores e músicos de Valença, Ilhéus, Itabuna, Ipiaú, o que me faz pensar num elemento a mais dessa profundeza, desse lado de dentro que é tão saltante em Arado. Não por estar nas indicações do El Cabong esse EP captou a minha atenção. Conheci Arado a partir da indicação virtual feita por um amigo. E confesso: dei o play em casa mesmo, nos trânsitos de afazeres de casulo. Logo na abertura, suspendi as movimentações domésticas e fui colecionando pequenos assustamentos provocados por deliciosas descobertas. Foi primeiramente na interioridade do casulo que fiz o mergulho (novamente o lado de dentro).
Fiquei e fico sem poder baixar a guarda da esperança quando me re-inaugurei (e continuo reinaugurando-me a cada nova sessão sonora) ao ouvir o EP de um jovem que, com menos de vinte anos de permanência neste mundo, salta para trás e nos traz um caçuá transbordante em diálogos musicais. Rafique Nasser chega e não vem só. Uma falange de cantadores (os de ontem, os de hoje, todos permanecentes) toma assento e lança focos de incêndio nas nossas profundidades – que resguardam os sonhos, amores, as esperanças políticas. Já na primeira música, manifestado em psicodelias cortantes, Rafique brada e canta com a rouquidão macia de quem muito tem a dizer ao mundo: “Depois da bomba atômica vem/ um cogumelo para nos alimentar” (Rafique Nasser, Na Valença)
“O rasgo na terra é preciso” (Rafique Nasser/Ayam Ubráis, Arado). Diria que certeiro, necessário. Daí brotam os sentidos do novo, dos poderosos frutos teimosamente gestados em tempos tão ameaçadores quanto estes que nos cortam a experiência de existir. E assim é Arado: “esse canto torto”, que fere a inércia e alimenta movimentos de re-existências. Sensivelmente gestado pelas vias da marginalidade e camaradagem artística, esse EP pode ser acessado nas principais plataformas virtuais e vem como intenso chamamento para que a gente, do lado de cá, avie, tome rumo e corra trecho negando a imobilidade que parece ter se transformado no mote do agora que nos é imposto. São cinco canções, cinco chamamentos, cinco desafios/ventos de dentro, cinco intensidades imãtizando as nossas veredas do sensível.
Penso Arado como inauguração do jovem músico Rafique Nasser e também (re)inauguração nossa. Ver Rafique Nascer em poetência sonora é enxergar em nós ovo das esperanças cortantes, é “Deixar que Deus se vingue por nós/ já que o nosso algoz/ está sentado no trono do poder” (Rafique Nasser, Nessa terra). E assim, Rafique, nascido, vai conosco (re-inaugurades) cosendo e colhendo ameaças ao desencanto, dançando em pontas de facas e lançando ao mundo canções cortantes que mantêm “teso o arco da promessa”, como bem diz outro baiano, Caetano Veloso. Com olhar poético e voz dissidente, Rafique Nascer, acompanhado por tantes, é também o que eu chamo de “interrogação vagando com pressa”. Daí a experiência imprescindível de ouvi-lo em Arado.
Daniela Galdino (BA) é Poeta, Performer e Produtora Cultural. Docente da UNEB. Como Poeta, publicou Espaço Visceral (Editora Segundo Selo, 2018), Inúmera/Innumerous (Mondrongo, 2017), Inúmera (Mondrongo, 2013), Vinte poemas CaleiDORcópicos (Via Litterarum, 2005). Organizou Profundanças 2: antologia literária e fotográfica (Voo Audiovisual, 2017) e Profundanças: antologia literária e fotográfica (Voo Audiovisual, 2014).