Gramofone

Por Pérola Mathias

 

MICROARQUITETURAS – RAFAEL MACEDO & PULANDO O VITRÔ

 

 

“Vou repetir quando for necessário / deixo as vanguardas pra todos vocês” é uma das frases poéticas e provocativas que permeiam o disco “microarquiteturas”, dos mineiros Rafael Macedo e Pulando o Vitrô, lançado no último mês de junho pela gravadora Roncinante, do poeta e músico carioca Sylvio Fraga.  O verso que abre a faixa Moeda é revelador em muitos sentidos e sintetiza um pouco do que parece ser esse disco no contexto da música atual: ao mesmo tempo em que não dá a mínima para qualquer tipo de receita mercadológica ou fórmula popular, também não busca o hermetismo acadêmico. Promove um trânsito entre linguagens e sonoridades, ritmos e tradições, respeitando apenas a criação, a invenção e uma questão muito própria.

“microarquiteturas” é um disco que começou a ser gestado há mais de dez anos. Teve como matéria prima principalmente as harmonias e melodias criadas no violão e nas letras, sobre as quais Rafael Macedo trabalhou e acrescentou os demais instrumentos e as vozes. Seus principais parceiros no disco são Bernardo Caldeira e Rafael Pimenta.

O disco é composto de 11 faixas que têm formatos e durações bem diferentes, que vão dos 2 minutos aos 9 minutos. Suas músicas, às vezes, parecem mais peças do que canções. Noutras são mais canções do que peças. As camadas de vozes, o texto poético, os recortes de noticiários e as referências explícitas a músicas conhecidas de tempos, lugares e ritmos diferentes parecem construir uma narrativa quebrada, típica dos nossos tempos. Porém, a fluidez das harmonias cria uma unidade dentro desta construção pautada por uma soma de detalhes mínimos – ou, nas palavras de Rafael, “esforços ao redor do mínimo”. Assim o músico justifica o nome do projeto: “o título tem a ver com essa coisa de ir e vir, de ouvir várias vezes a mesma coisa ir se modificando, de decidir se um prato de bateria deve ser colcheia ou semicolcheia porque o clarinete tocará um segundo depois; de decidir se o contrabaixo toca mais à esquerda ou à direita do captador para que a sonoridade ideal seja alcançada. Acredito que por ali esteja o ‘micro’. Já as ‘arquiteturas’ são o resultado, de algum modo, da soma de tudo isso, da estrutura final, onde morarão os ouvidos”.

 

Rafael Macedo & Pulando o Vitrô / Foto : Luiza Palhares

 

Um exemplo é a faixa de Lá, a única inteiramente instrumental do disco, que começou a ser composta em 1999, segundo conta Rafael. A composição que inicialmente tinha 02:40 foi finalizada com 8 minutos na versão gravada. É uma faixa que vai “de uma textura homofônica a uma exploração de texturas polifônicas e heterofônicas”. Aqui a voz não chega a pronunciar nenhuma palavra, apenas emite sons. Segundo o próprio Rafael descreve, ela é um exemplo de sua relação com a ideia de “texto” num sentido amplo: “não há qualquer nota ou qualquer ‘passagem’ instrumental criada sem o desejo de discurso, sem algum tipo de necessidade de narrativa, ainda que inspirada pelo absurdo, como Delírio. Para mim, tudo, instrumentos, vozes e letras são texto, são linguagem e querem comunicar algo em comum ou dialogal entre si, cada instância a seu modo”.

Delírios explora ainda um ponto fundamental: o silêncio. Ele permeia da percussão inicial até o final da música, que termina com uma série de respirações fundas e pausadas. As letras das demais faixas do disco vão construindo, junto com as melodias, uma espécie de micro poéticas do cotidiano em seus versos. Como em Outro retrato, em que Rafael canta cenas do dia a dia – “eu só quero ver tu me dizer / de algum lugar melhor / já cansei de ser peão / quase todo dia vou na padaria ali / tomo uma branquinha” – e no fim vem a voz feminina do disco, que é da atriz e poeta Brisa Marques, que sussurra: “Se for algo, prefiro a voz do imponderável”.

Canto Troncho começa com a narração de um noticiário que é atravessado pela música, enquanto a verborragia dos acontecimentos continua soando. Depois, a voz é cortada e a melodia segue até que o canto entre – “esse canto troncho não inventa o que você quer ser” -, e depois ele volta a ser cortado pelas notícias que correm junto da música. No fim, a voz de Brisa entra pedindo “Calma! Calma! Nosso programa acaba daqui a pouco. Ele é sempre do mesmo tamanho: é o seu desejo”.

 

Rafael Macedo & Pulando o Vitrô / Foto: Luiza Palhares

 

“Quem só come sonho morre amargo”, de Vivi, é outro verso marcante do disco. Já a faixa essa não é (assim mesmo em caixa baixa, como frisa Macedo) começa com a voz de Brisa recitando o verso “Capa: um biombo entre o mundo e o livro” e termina com “Homem: um biombo entre o som e o sentido”. Esta é uma das músicas permeadas por citações. Para o ouvido leigo, de cara identificamos Lua de São Jorge, que acaba por desembocar em Alegria, alegria. É uma trama complexa de referências, colagens e experimentalismos que se referenciam também a compositores distantes da música popular, como Messiaen. Essas referências soam como “samples orgânicos”, unindo diferentes linguagens exploradas ao longo do disco. O próprio Rafael descreve essa teia criada: “é, em resumo, a canção que não quer ser canção, sendo; e que não quer – sabendo que não pode – ser única (com colagens de clássicos da MPB e da música pop norte-americana ou de Debussy, Schönberg, uma “pontinha” de Gershwin e Wagner), sendo, de algum modo, ela própria. É um resumo da angústia e da alegria e desejo de compor e criar por aqui, no espantoso século XXI”.

Além do Pulando o Vitrô, formado por Bernardo Caldeira, Rafael Pimenta e Yuri Vellasco, o time de músicos que acompanha “microarquiteturas” é formado por Alexandre Silva (clarinetes); Francisco César (bandoneon, sax e taça); João Paulo Buchecha (trombone); João Paulo Drumond (percussão) e João Paulo Prazeres (saxofones). No disco participam ainda Alexandre Andrés (flauta); Leonora Weissmann (voz); Micael Pancrácio (guitarra flamenca) e Ricardo Passos (voz); além da voz de Brisa Marques, que participa do disco e dos shows. Brisa e Rafael têm trabalhado juntos em experimentações poéticas desde 2012, quando ele participou da Mostra Cantautores em Belo Horizonte.

No show pensado para o disco, há também a participação de Leandro César, pesquisador da linguagem da performance. O show do disco promete inserir no palco uma lógica teatral e uma apresentação mais concentrada, sem falas ou pausas, mesclando cena e som. Por enquanto, os shows estão acontecendo apenas em Belo Horizonte.

 

 

 

Pérola Mathias é doutoranda em sociologia, pesquisadora e crítica musical. Editora da revista Polivox e do site Poro Aberto.

 

 

 

 

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