Jogo de Cena

Sobre contradições, mentiras e confissões demasiadamente humanas

 Por Vivian Pizzinga

 

“Aqui Jaz Henry” / Foto: William Aguiar

 

Aqui jaz Henry (Here Lies Henry), obra de Daniel MacIvor, com idealização, concepção e, frisando-se agora, brilhante atuação de Renato Wiemer, é espetáculo obrigatório para os que amam teatro, para os que apreciam e se emocionam com textos excelentes, para os que têm ruminações filosóficas e psicológicas incessantes e, last but not least, para os que gostam de um humor leve salpicado aqui e ali em um texto denso formado por indagações fundamentais.

A tradução de Renato Wiener faz adaptações interessantes (e bem sutis, em alguns momentos) para o contexto brasileiro, incluindo menções políticas recentes, sem partidarismo. A direção artística de Kika Freire, por outro lado, impulsiona um espetáculo que, de saída, pelo texto, já tinha tudo para ser ótimo. O cenário de Teca Fichinski merece muitas menções honrosas, porque é delicado e repleto de beleza, com velas e rosas espalhadas no chão (elementos que, eu ousaria dizer, fazem referência à morte, que está presente no título e no texto). A iluminação de Paulo Cesar Medeiros é primorosa, salientando momentos ímpares e sublinhando as escolhas de cenário. E a trilha sonora do polivalente (aqui, no bom sentido, pois a arte costuma e deve ser assim) Renato Wiemer, sem exageros, sem atropelos, com toques de genialidade inclusive na duração variável em que é executada, fecha um conjunto que não tem erros, só acertos.

Para mim, que não sou do teatro mas, enquanto não me aventuro a escrever dramaturgia, pertenço à escrita e zelo pela psicanálise (e pela democracia), além de amar cada vez mais o teatro, sempre fica um pouco difícil escrever texto sobre espetáculos por causa dos atores. Confesso agora – e depois me calo para sempre – que se trata de um sofrimento. A questão é: como escrever sobre atuação e interpretação sem magoar um ou outro, sem reforçar a clássica disputa de egos e vaidades que existe em todos nós e que, desculpem, no meio artístico (assim como no acadêmico) é uma constante? E pior: está realmente difícil encontrar espetáculos em que a atuação seja, de fato, boa. Convincente. Hoje, porém, escrevendo sobre Aqui jaz Henry, isso não será difícil: o monólogo é sensacional também por causa do arrojo da interpretação de Renato Wiemer.

 

“Aqui Jaz Henry” / Foto: William Aguiar

 

Vamos às razões em um novo parágrafo, ainda que permaneçamos no mesmo assunto: o ator sabe respeitar os tempos. Não se afoba. Não se intimida. Faz parecer fácil essa rara arte da atuação. Faz a gente acreditar que todo mundo poderia estar ali, no lugar dele, só que não, não poderia, são poucos os realmente bons. É engraçado quando tem que ser. Remexe os nós da garganta quando tem que remexer, e não os desata, porque os nós da vida e da garganta são sempre muito apertados e emaranhados. É claro que ele tem um bom texto na mão para ajudá-lo e uma excelente equipe que o auxilia, é evidente que ele tem Kika Freire na retaguarda, mas poderia colocar tudo a perder, ofuscar a genialidade do texto de Daniel MacIvor com um atuação frágil. Mas não. Ele não. Felizmente não. Ele não faz isso. Ele não não não. Mas ele, Renato Wiemer, sim. Nada disso acontece para a sorte do público e daqueles que apreciam um bom texto literário e dramatúrgico. Gostaria de ter aplaudido de pé o seu excelente trabalho, mas, na sessão a que fui, ele não aparece no fim de tudo, única dúvida que restou e permanece boiando dentro de mim: por quê?

Mas vamos ao recheio do espetáculo: sobre o que mesmo o texto fala? Tentando escolher os percursos textuais escolhidos por MacIvor e que mais me chamaram atenção, eu diria que fala sobre as contradições que habitam em cada um de nós, os chamados seres humanos, demasiadamente humanos (para lembrarmos de Nietzsche). E, nesse sentido, as mentiras (aí a hipótese é minha e, como toda hipótese, é provisória e sujeita a comprovação científica e posterior refutação ou corroboração) talvez sejam o canal privilegiado de expressão das contradições humanas, desmesuradamente humanas. E as mentiras podem ser tão convincentes que nos perdemos nelas, a não ser que, ao final, mostremos que nem tanto assim. Logo, mentiras sinceras nos interessam.

A peça, portanto, é cheia de surpresas, as mais variadas, do início ao fim. Piadas bobas que ficam engraçadas, porque a crítica é exatamente a elas. Dicotomia explícita e despudorada entre a felicidade e a verdade, e a difícil escolha que temos de fazer entre uma ou outra (mas talvez pode ser que andem juntas, e isso o Henry, filho de Henry, personagem do nosso monólogo, não nos diz, sou eu que tento ser otimista enquanto escrevo no dia das eleições). A historinha sapeca que coloca a mulher como uma mera costela de outro homem (já ouviram essa história muito louca?) e a troça que o texto faz disso, quando indaga se alguém quer ser servido de costela com batatas. Os trejeitos que insinuam a dificuldade que é a espontaneidade na vida e nos círculos sociais, porque falar em público é um desafio para a grande maioria de nós, e mais ainda se for para falar mentiras ou omitir as questões centrais da vida e de nossas biografias humanas, extremamente humanas. A tosse histérica que sempre acompanha a menção a um familiar de Henry. A interlocução com a plateia, constante e respeitosa, sem invasões violentas que nem todos suportam e que não são obrigados a suportar (respeitemos a timidez do público; cabe aos artistas a sensibilidade de compreender também que nem sempre os envergonhados são os menos tocados pelas propostas dramatúrgicas que assistimos por aí). A lista é extensa, vale conferir por si só.

 

“Aqui Jaz Henry” / Foto: William Aguiar

 

E, no final das contas, Aqui jaz Henry é também um espetáculo sobre reflexão a respeito do que fazemos com as nossas vidas, que escolhas tomamos diariamente, os desdobramentos que essas escolhas geram, a capacidade que temos de seguir adiante e voltar atrás, de lutar pela democracia ou não. É um texto que visa, também, fazer com que sejamos honestos conosco, que sejamos francos diante do espelho, sendo essa a franqueza mais difícil de arrancarmos de nós mesmos e que, às vezes, muito às vezes, com o psicanalista no divã, de costas e deitados, conseguimos expressar sussurrando, para que nem o analista sagaz nem nós próprios ouçamos o que acabamos de falar; sussurramos nossas mentiras sinceras com um timbre de voz quase inaudível porque talvez não queiramos escutar as verdades escrachadas que empurramos para debaixo do inconsciente diariamente. A psicanálise mete medo tanto quanto o teatro. E por isso são menos frequentados do que deveriam ser. Ser franco com a gente mesma significa falar de nossos equívocos. De nossas raivas. De nossa inveja. Das fantasias mentais que fazemos por causa de ciúme. De desejos de vingança que cultivamos na calada da noite e das insônias perturbadoras. Ser franco com a gente mesma significa verbalizar finalmente as inúmeras omissões perigosas e falar das alianças espúrias que visam objetos espúrios e que às vezes nós fazemos ou almejamos fazer. Parece lição de moral? Não. É lição de ética esteticamente conduzida.

Finalmente, Aqui jaz Henry é um peça, digo mais uma vez, obrigatória, sobretudo para aqueles que são tocados pela sensibilidade do texto literário, quando tem consistência e substância. Para encerrar o presente texto, menciono um dos momentos finais, em que Henry, nosso protagonista, refere-se à esperança que retira do fio da espinha dorsal, quando está no sofá vendo televisão, e Renato Wiemer, de costas para a plateia, faz uma bela descrição imagética que nos dá a convicção de que Daniel MacIvor é um escritor de mão cheia, convicção que construímos mesmo sem ter lido o original. O excerto e a dramaturgia desse momento a que me refiro neste parágrafo derradeiro são o que há de mais fantástico no espetáculo. Palmas de pé!

 

Vivian Pizzinga lançou os livros de contos Dias Roucos e Vontades Absurdas (Oito e meio, 2013) e A primavera entra pelos pés (Oito e meio, 2015), além de ter participado de algumas coletâneas, sendo as mais recentes Cada um por si e Deus contra todos (Tinta Negra, 2016) e Escriptonita (Patuá, 2016). Trabalha também com psicanálise e Saúde do Trabalhador.

 

Clique para imprimir.

Comente

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *