Por Pérola Mathias
MARCOS VALLE – CINZENTO
Claro que em janeiro não sabíamos o que estávamos prestes a viver pelos próximos 7 meses: uma pandemia. Mas já tínhamos fatos e dados suficientes para saber que, sendo brasileiros, teríamos um ano difícil – ou, no mínimo, desafiador. Ao menos em termos econômicos e políticos. E parece que o disco de Marcos Valle, lançado ainda no primeiro mês do ano, parecia já dar conta desse ar no qual estamos imersos. Seu título é “Cinzento”, e traz na capa uma foto em que Valle aparece sério, envolto por um plástico transparente.
Marcos Valle tem quase 60 anos de carreira. Seus discos marcaram fases e períodos diversos da música brasileira, justificando que um crítico o considerasse, ele mesmo, um gênero musical; caracterizado pelo “estilo valleano”, na qual cabe bossa, cabe experimentação, cabe jazz e cabe pop.
Ao ouvir “Cinzento”, três aspectos parecem saltar aos ouvidos. O primeiro são as letras e os arranjos. Elas soam atuais, urgentes, feitas mesmo com a consciência de que o agora precisa ser transformado para continuar existindo. O segundo é que o disco foi composto por parcerias diversas: a clássica de Marcos com seu irmão Paulo Sérgio e também com uma geração bastante conhecida de músicos cariocas, mais novos que Valle. Entre eles, Moreno Veloso, Domenico Lancellotti, Kassin e Bem Gil. O músico também recuperou uma parceria sua com Zélia Duncan, ainda inédita. Somam-se ao time, ainda, Jorge Vercillo e um dos maiores cancionistas do país, Ronaldo Bastos. A faixa de abertura e a faixa-título do disco são de uma parceria inusitada, porém bem sucedida, entre Valle e o rapper paulistano Emicida. O terceiro aspecto é a leveza com que o disco consegue ir de um retrato da realidade ao tema do amor. O que lembra o feito do músico no seu clássico “Previsão do tempo”, de 1973. E é preciso dizer que essa “leveza” é implícita no som característico de Valle, e não resultado de uma negação da aspereza da vida real.
Logo no primeiro minuto, é impossível não se render ao groove de Valle somado aos versos “Se tudo é ciclo, me reciclo e volto mais bonito, ano que vem/Em tudo eu acho graça/Mesmo em meio à desgraça/Entendo e rendo graça/Que a vida ainda é de graça”, que soam como profecia ou mantra. “Cinzento” também traz o tema do tempo, cita o deus Cronos como um ser de fome voraz. Mas sem o movimento do tempo, não há aprendizado. Admitindo a grandeza do tempo, é possível libertar a alma. E Valle e Emicida deixam o recado: “Pra ciência e outros campos que aciono/Alinhado com cada cromossomo/Grisalhos cabelos dizem bem como somos/Bem tranquila nos aguarda num domo/A cinza sabedoria de cajado e quimono”.
“Se proteja”, parceria com Bem Gil, também parece trazer um recado de como enfrentar dias difíceis: olhando para si mesmo. Diferente das composições que Valle assina com Moreno, Kassin e Domenico, nas quais predomina a temática amorosa. As músicas são “Redescobrir”, “Lugares distantes” e “Pelo Sim, Pelo Não”. Nesta última, a cantora Patrícia Alví, também esposa de Valle, canta junto a ele.
A letra de Jorge Vercillo em “Só penso em Jazz” faz tremer as teses críticas escritas por José Ramos Tinhorão nos idos dos anos de 1960. Nela, o sujeito revela uma completa paixão pelo jazz, que poderia ser completamente sem sentido, já que “cê fica louco” e “cê ganha pouco”, diz. Mas a alegria do som vale a pena e ele termina ligando nomes de diferentes vertentes da música brasileira, não apenas da bossa nova, ao jazz, como Ivone Lara, Capiba e Luiz Gonzaga.
“Cinzento” saiu pelo selo brasileiro Deck Discos, menos de um ano depois do disco “Sempre”, lançado em junho do ano passado pelo britânico Far Out Recordings. Esse último tem uma sonoridade mais ligada à bossa, enquanto o último soava mais funky e pop. O disco pode ser um belo afago para sua quarentena, caso ainda não tenha escutado.
Pérola Mathias, doutora em sociologia, pesquisa música contemporânea e é autora do blog Poro Aberto.