Gramofone

Por Larissa Mendes

 

OQUADRO – PRETO SEM AÇÚCAR

 

 

“Não sei se sirvo o rap ou o rap é quem me serve”, já dizia Marcelo D2 em “Vai Vendo” (2003). Tal verdade é incontestável quando se trata das cabeças fervilhantes dos rapazes d’OQuadro. Formada em Ilhéus (BA) e com mais de duas décadas de estrada, OQuadro é representante de uma tendência do hip-hop denominada New School, movimento que promove inovações estéticas a partir do diálogo com outros estilos musicais e movimentos culturais. A banda lançou em novembro passado seu terceiro álbum de estúdio, Preto Sem Açúcar (2021), com uma sonoridade resultante de suas múltiplas pesquisas e influências artísticas, sem abandonar jamais o discurso contundente do rap. Ainda que o título pareça insinuar uma alusão ao fruto do cafeeiro, o conteúdo desse “bule” é muito mais denso: analisa os tempos sombrios da escravidão para demonstrar as implicações desastrosas causadas pelos barões do café e senhores de engenho.

Há que se dizer que o septeto baiano, composto atualmente por Jef Rodriguez (voz), Nêgo Freeza (voz), Ricô (voz e baixo), Rodrigo DaLua (guitarra e synth), Vic Santana (bateria), DJ Mangaio (programações) e Jahgga (percussão), apresenta um hip-hop peculiar no decorrer dos anos e não seria diferente ao longo dessas (bem servidas) 15 faixas. Trata-se de uma ode à negritude e a sua história, sem precisar “adoçar” nenhuma das mazelas da vida. A lista de participações especiais também é expressiva e extensa (14 ao todo), e inclui Jorge Du Peixe, Tuyo, Ellen Oléria, Russo Passapusso, Rodrigo Piccolo (Mato Seco), BillyFat, entre outros nomes da cena musical brasileira. Por falar nisso, vale destacar que a banda teve uma elogiadíssima participação no projeto de releituras de canções de Adriana Calcanhotto, Nada Ficou No Lugar (2019), com a canção “Negros”.

 

OQuadro / Foto: divulgação

 

A vinheta de abertura Um Brinde A Minha Gente (um conflito interno/bem-vindo ao meu inferno particular/(…)/eu vejo tudo/mas ninguém me enxerga) dá o pontapé inicial a pouco mais de 45 minutos da história do Brasil passada a limpo. A literalmente fuzilante Kalashnikov, por exemplo, tem a participação da não menos potente Ellen Oléria. Se I Can Feel It adverte que “em cima do muro é um lugar perigoso”, Motor da Fome, parceria com Davzera (ícone do rap underground), analisa os quase 19 milhões de brasileiros em situação de fome. Nas primorosas Asas (o sol na carne sob o sol/pra lavar, pra limpar esse banho de sangue/abre as asas sobre nós/passarão passarinho voos rasantes no mangue/e o sol virá depois que as tempestades calmarão), em companhia de Jorge Du Peixe, e em Não Vai Passar Batido (eles sabem que não vai passar batido/cada gota de sangue no chão, cada tiro/cada lágrima da mãe por seu filho), parceria com MCDO, da banda Afrocidade, a crítica é sobre a violência urbana, especialmente contra o povo negro.

Se a malemolente Caça tem a participação das cantoras Xênia França e Vanessa Melo, Meu Game tem a companhia de Russo Passapusso, do BaianaSystem, e brada que “aqui é preto sem açúcar, não tente me refinar!”. A vinheta Paz nos dá um importante conselho: “cuidado em quem você bota bandeira, seja você sua revolução!”. Santo (chorei dilúvios por sua atenção/mundos e fundos movi, comovi/resolvi deletar essa devoção), conta com a belíssima participação dos afrofuturistas curitibanos do Tuyo e Campo Minado — uma das melhores canções do álbum — tem a presença da cantora e compositora Cronista do Morro (revelação do hip-hop baiano) e de Billyfat, membro do #OMC (Oferecimento Máfia Crew), expoente da nova geração do rap de Ilhéus.

Desafio você a não bater palmas no compasso de Fala Pra Mim (fala pra mim, o seu lamento/dispensas já não cabem mais ressentimentos/já não consigo mais dormir, com esse tormento/sem medo é só deixar fluir, o sentimento) ou se pegar assoviando no ritmo de Ascende… o pavio e apavora! A africaníssima LULULULULU, faixa junto ao ganês DJ Sankofa, se encaminha para o final de forma quase transcendental, porém é a vinheta I Tal, narrada por Bia Ferreira, que encerra o álbum alertando que a alimentação ofertada pelo colonizador ao povo negro causa até hoje problemas de saúde como a pressão alta e o diabetes.

Preto Sem Açúcar sucede os álbuns OQuadro (2012) e Nêgo Roque (2017) e está disponível em todas as plataformas digitais. Apesar de não se tratar exatamente de uma trilogia, arremata de forma perfeita o conceito de evolução sonora e estética do grupo. Enquanto o primeiro disco dialogou com as bases do reggae e o segundo com as raízes do rock, este último passeia por sonoridades influenciadas por elementos eletrônicos. Já em relação à narrativa, ela se mantém cirúrgica e aborda questões como o combate à fome e a luta contra o preconceito racial. Sem fazer “média”, o som d’OQuadro é puro e certeiro como um café forte. Sem açúcar, com afeto.

 

 

Larissa Mendes não dispensa um cafezinho [com adoçante] e uma boa música.

 

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