Virgínia do Carmo
No avesso dos voos
Há pássaros que me doem no avesso
dos voos. Como se engolisse a vertigem
de um caos de penas e perdas. Acentos
graves em desassiso na queda invertida das
lágrimas
………do fundo de mim para a superfície dos teus
…………. olhos.
E sei que não há outra pele que me salve
da solidão. Porque tu corres-me por dentro
do corpo. Qual seiva espessa do ar que me
atravessa. Um abismo de sopros a romper-me
o peito. Tempestade de reversos. O oposto do
teu toque.
Há pássaros que me doem no avesso
das asas, sabes. Como se a vida fosse este caminho
de pernas para o ar. Um horizonte desenhado
ao contrário. Um céu que piso sob o peso da terra.
Há pássaros que me doem, meu amor.
No avesso dos voos.
***
Decomponho-me
Sitiada na hora da torção da luz, decomponho-me.
Em excertos de estrada húmida. Em filamentos
de solidão.
Entorno o meu corpo nos intervalos das tuas mãos
recorrentes, e contemplo a agonia amplificada dos
ruídos na crosta arfante da terra.
…………[Consubstanciação do impacto da memória.]
Como as gotas de ti no vidro sujo.Como aquele
cheiro a interior prescrito.
…………. [Como se não pudesses
habitar-me mais.]
E no movimento perplexo dos olhos golpeados
de horizontes intermitentes, respira-me o lamento.
O meu grito lentificado,
…….. [pedestal do teu aceno]
a sangrar visões de nós. Um uivo grave, desnorteado,
a ser-me eco mortificante na pele.
E sitiada, ainda, na hora da torção da luz,
……………decomponho-me.
***
O silêncio das pedras
Apetece-me o silêncio das pedras
A quietude das areias primitivas de um chão
sem dono
A lonjura sem fundo
nem pele
que me doa
Apetece-me a nudez das escarpas
salgadas
A liquidez inabraçável
do mar
O alívio de não ter peito
O descanso das mãos
Apetece-me o silêncio das pedras
***
Um rosário de dias sem nome
Sobre a mesa do meu jardim de pó e ar,
um rosário de dias sem nome. Dias
(in)seguros na compressão de dedos partidos.
Dias memoriados em cacos de porcelana azul.
Contas de um céu por limpar.
É um rosário de dias sem rosas nem chão. Dias
desfiados em mistérios de um tempo menor, a tremer
por dentro das coisas, a doer nas dobras dos dedos
partidos. Atravessado de vestígios da salvação
por encontrar.
É um cordão de pedras e nós a engolirem silêncios
irrespiráveis.
Estranha cadência de uma procura qualquer.
Três terços de um todo por acabar.
***
Cansada
Cansada de me ser um relevo abstracto na textura das coisas que piso.
Cansada de percorrer esta cordilheira insular de abraços possíveis.
Aprendi a respirar vazios estranhos ao meu corpo e dói-me já o peito
de tanto me salvar dos espaços contaminados.
Cansada de calcar a ternura em gavetas que já não fecham e depois
partir para um mundo onde não cabe todo o tempo que ainda falta.
cansada.
Cansada de tudo o que me sobra do chão.
(Virgínia do Carmo nasceu em Champagnole, França, mas foi em Trás-os-Montes (Portugal) que cresceu e aprendeu a escrever. Licenciada em Comunicação Social, o seu percurso profissional passou pelo jornalismo, mas foi no mundo livreiro que encontrou a sua verdadeira vocação. Atualmente leva adiante um projeto (Poética – Livros, arte e eventos) que, mais do que uma livraria, pretende ser um espaço de verdadeiro e profundo encontro de livros e pessoas. É autora das seguintes obras: “Tempos Cruzados” (poesia), Pé de Página Editores, Coimbra, 2004,“Sou, e Sinto” (poesia), Temas Originais, Coimbra, 2010,“Uma luz que nos nasce por dentro”, Lua de Marfim Editora, Lisboa, 2011)
Poemas maravilhosos. E que domínio do idioma!
Gina,
Adorei ver-te neste espaço.
Tu e a tua poesia merecem a maior divulgação possível, porque ambas são excelentes…
Um beijo, querida amiga transmontana.
Gostaria de lhe dar os parabéns pela sua poesia, linda e profunda!.
Belíssimos poemas. Profundas mensagens. Parabéns.