Maíra Mendes Galvão
o que as mulheres fazem aos domingos?
as mulheres
como nós
ocultas
aos domingos
vadiam
o quanto podem
a qualquer hora
e sozinhas
conjuram demônios
se despem das peles
furam bonecos
viram sirenas
arpejam
arrastam móveis
afiam facas
desaparelham-se
criam olhos no rabo.
epopteias,
as mulheres
ocultas
aos domingos
como nós
têm um duplo
que maquia a semana
e faxina
e se esmera
e afaga
e se estupora
enquanto
a outra
bebe
disnômica
iâmbica
da várzea
do lete.
***
a broca
“tenho fome de me tornar em tudo o que não sou” – Waly Salomão
no meio da tarde li essa frase
no meio da noite acordei brotando
em dada hora da manhã, de novo
havia sonhado com alguém a que doravante chamo “você”
mas você não era presente, nem passado
tinha órbitas encauchadas
pálpebras jamais cerradas
uns lábios mastigados e virgens, quase
e um discurso que saía entrecortado
um arremedo de diálogo
naquele cenário multiverso
naquele mundo subjétil
naquela luz insaturada
não sei se era o que sou
constituo ou sou enervante
de fibrosas correntes
de túnel monóculo fitava
sua boca
que dizia coisas, enquanto
saíam bolos, de uma lata,
de carne moída
mais encruada do que cozida
e você, de mancheias
deglutia
destacado
do gesto em si, até do simbólico
aquela massa aflorada
comia e dizia e era homem, era outro
e o apetite não era impulso
não era reflexo
era artifício, era palavra, era método.
***
(ana)crônica de uma ótica ou a eterna moribunda
meu sestrodestro
esturdido véu
nele, tão excentro
olho
os modos
as ameaças
as vergonhas
se concentram.
para enxergar, um
só basta
adestro
– olho de fossa
para escoar bofes
– olho de fumaça
para esconder gafes
– olho de faca
para extirpar bifes
– olho de coxia
para elevar fobos
locus horrendus
donde espreita a impostura
extemporal
olho – orco – ôminos.
***
acuidade vulnácula
fibromiasma no lugar de leito
a cabeça de penas e lacunas
um aperto nas conas – a de nervo e a de sangue
– melindroso fez visita
impromptuosa
lancina ancora cona-píncara
e retorna, anacruz.
***
cristalografia
no crisol, cristalogia que intento acumular
é o avistado que se embrenha e transforma
nas cristas e crenelagens, grisol
o zênite se espraia e, de gris, tinge
de vez, tudo pré-maduro,
sustentando o suspenso sem fim,
adiando a mundos, afora de resolução,
tateando em letras o vocovocífero
do verde de lastro e pedra.
dos limites das sombras e
de seu deslocamento, vejo,
em quase glaceada órbita,
toda a petrologia
e ignitude
em seus recônditos de cumes geminados,
pretenso planalto,
por isso vivente.
aceito, assim,
a topologia,
que, de rompante, iterativa me acompanha
e reconheço essa face das faces,
cresta em toda volta,
com intenção de ser infinda
crostalogia,
fundante assombração.
***
Ersatzspielerin
teimo em não acender a luz, encalhada
sem saber se quem – eu ou o mundo
é suplente de algo primevo
se o que existe é a tensão ou
degrau de recursividade.
o violento da memória é a retenção do vazio.
penso em palavras multiportantes, como não me escapa fazer:
merimnologia, ou: considerar é arder.
mermeridade, ou: ansiar é condenar-se.
metameridade, ou: a parte pelo todo.
palavras me procuram, procuram a nós
porque as salvamos de um desígnio adjunto
nos lançamos aos fins da tensão.
me vejo merócrina, exocito
e a elas entrego
qual impostora estertorada
o grau primeiro das coisas.
Maíra Mendes Galvão nasceu no planalto central em 1981, estudou Desenho Industrial e Filosofia na Universidade de Brasília. Depois de formada, morou na Inglaterra e passou a dividir seu tempo entre Brasília, Alto Paraíso e São Paulo (e outras cidades nos interlúdios). Trabalha como tradutora e revisora desde 2004 e foi assistente editorial na UNESCO. Publicou na Revista Geni, na Revista Raimundo e escreveu um poema especialmente para a antologia “Golpe: antologia-manifesto”. Realiza oficinas de leitura e criação de poesia e conversas sobre literatura feita por mulheres junto com Jeanne Callegari.
Poemas que a um tempo constritam e alargam. No imo dessa arquitetura um átrio donde arcos eternizam saltos e sobressaltos, labirintam passagens aos quatro cantos, abrem naves ou alcovas, sacelos de basaltos, ronceiramente escavados à fio por seres glaucos.