Janela Poética I

João Gabriel Pontes

 

Desenho: Re

 

entre certos instantes de brahms e uma cloaca, III

 

O curumim se pendura no avental de Hera
para tentar escalar suas tranças graciosas.
E são fundadas acrópoles a partir dos inefáveis
desejos humanos,
as caçarolas de alumínio
sobre bocas de dragões furiosos.
O contorno da romã se desfaz
em linhas,
e o curumim consegue, afinal,
vislumbrar os paralelos que fatiam
a superfície do planeta.
Como é fácil se encantar pelos Trópicos!
Gira-se a torneira
e a água molda o espaço,
e a água molda as ideias & os sentidos
do curumim.
O ralo da pia bebe vastos açudes de provações
e desaparece.
A carne plástica das dobras do sifão
recobre o túnel de aros de uma tranqueia
esganada.

………………………………. “Incêndio em mares de água disfarçado!
…………………………………..Rio de neve em fogo convertido!”

Hera senta
o curumim à mesa, serve
o almoço e reza
pela alma do marido,
que deu o couro às varas
faz poucas semanas.
……………………………………………………………..Sim:
todos respondemos pelas escolhas
daqueles que pisaram estas campanhas
estéreis antes de nós.
……………………………………………………………..Sim:
nossos escritos são medíocres
reproduções dos palimpsestos que abarrotam
a biblioteca suspensa pela sobreposição
dos anos.
……………………………………………………………..Sim:
este cheiro de serragem molhada,
que tanto me incomoda as narinas
sensíveis ao fracasso, também atordoará
os belos deuses do futuro.

E o curumim marcha entre trovões.

 

 

 

***

 

 

 

Copérnico

 

Com o intuito de estancar a sede irresistível
que me pôs acordado
………………….no momento exato do alvorecer,
recorro ao catálogo das variedades
………………………………anarquicamente dispostas
…………nos compartimentos da geladeira.

Deparo-me com uma jarra de vidro
…………………………………………quase vazia.

No fundo desse crisol ilegítimo,
………….a emular o resultado
………….de ensaios químicos frustrados,
………….o resto do suco de laranja
………….que eu mesmo havia preparado
………….antes de dormir.

Uma quantidade ínfima do líquido
em cuja acidez estão concentradas
……………………todas as minhas perversas manias.

…………………………….Ralho comigo.

Por que não bebera tudo de uma só vez?
Por que guardara o último gole
………………………………para depois?

Preocupo-me somente
……………………com as sobras,
……………………com os resíduos,
……………………com os resquícios.
……………………A abundância das horas, deixo-a

aos que ainda esperam muito da vida,
aos que anseiam por algum clímax
ou por alguma absolvição,
aos que não puderam estar presentes
no velório de Ivan Ilitch.

Meus inimigos dizem que não tenho ambições.
……….E eles têm razão.
……… (Eu não quero ter razão.)

Prefiro o resto do suco de laranja
à revolução da laranjeira,

…………………..espécie ímpar em um bestiário
…………………..de leviandades,
…………………..utopia petulante a servir-se
…………………..de uma filigrana lexical

que ora descreve
a mecânica dos corpos celestes,
ora retém
o anelo dos corpos históricos
por mudanças drásticas.

Mal sabem os filólogos ocidentais que,

em termos ontológicos,

não há diferença
entre a lente arguta do telescópio
& a lâmina implacável da guilhotina.

………………………………A tradução da liturgia
………………………………na diagonal deve ser feita
………………………………porque graça não há
………………………………em seguir da ordem canônica
………………………………a tradição (da liturgia).

……..Se a guerra & a poesia
……..constituem, por excelência,
……..os espaços de negação
……..do tempo e dos arquétipos
……..partidos que veneramos,

……………………..os restos já são, por si, revolucionários.

 

 

 
***

 

 

 
Apocalíptica

 

O silêncio da madrugada & minhas confusas
vaidades inundam a sala de jantar.
Sobre a mesa de tampo redondo, o copo
farto de uísque.
Apenas o odor do malte já me embriaga.

Meus pensamentos se transfiguram
e você surge diante de minhas vistas
cansadas.
As pernas como colunas de mármore,
os braços em um abraço de fogo,
das ancas, larga baía,
& a boca convidativa
& os olhos que me desafiam, esfíngicos.
Sua voz, suave melodia de realejo.
Seu perfume, o escrúpulo dos oceanos.

Ouço as trombetas de mil anjos caídos
e você chove de fora para dentro.
Quimera bamba. Falsa musa.
Sua beleza me leva a descumprir todas
as promessas que fiz a meus fantasmas.

 

 

 
***

 

 

 

Relógios

 

All those times I was bored
out of my mind.
Margaret Atwood, Bored

 

Em cima do piano, eis um relógio. A cada rotação,

………………………………..seus ponteiros
……………………………………….me massacram.

………Alguém me fala sobre doenças
………e sobre consultas médicas,
………sobre planos de saúde
………e sobre seguros de vida.

Alguém me fala sobre os preços dos remédios,
………………que aumentaram por causa dos altos índices
……………………………………………..de inflação.

…………………….Alguém me fala sobre meus amigos;
e, ao que parece, quase todos já honraram
…….o famigerado axioma bíblico: ao pó retornaram.

……………………Alguém me fala sobre reencarnação.

……………E salienta que, de acordo com determinadas
…………………………………………………… [religiões,
o fenômeno do crescimento vegetativo a nível mundial
………………………………explica-se
………………………com base na transmigração dos espíritos.

………Confesso: com o fim do espaço público,
………a ideia de um amplo câmbio interplanetário de almas
………(versus a intimidade de minha casa)
……………………………………….me tira o sono.

……………..Prefiro ser enganado pelas manchetes
……………..e pelos anúncios publicitários
……………..de meu próprio planeta.
……………..Prefiro os mortos
……………..de meu próprio planeta.
……………..Prefiro também os relógios cruéis
……………..de meu próprio planeta,

muito embora suas engrenagens,
gáveas de presas anônimas,
ainda conspirem por minha capitulação,
independentemente de qualquer teoria fabulosa
acerca do além-túmulo.

……………………..A arquitetura da tabacaria
……………………..é rude, quase vulgar,
……………………..mas preciso reconhecer: tê-la,
……………………..em sua frouxa metafísica, põe
……………………..minhas cicatrizes em estado
……………………..de graça.

……..Olho para mim.
……..Olho para meus mortos.
……..Olho para o relógio em cima do piano.
……..Que tédio.

 

João Gabriel Madeira Pontes é um poeta carioca nascido em 1992. Seu livro de estreia, “Indiscrição”, foi lançado este ano pela Editora Kazuá.

 

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1 comentário

  1. Parabéns pela publicaçao dessa magnifica poesia, um rio que arrasta os olhos e magicamente acorda ecos além da simples compreensao das palavras.

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