Janela Poética I

Sara Síntique

 

Arte: Samuel Luis Borges

 

Seio

 

meus seios estão agora
devorados por tigres
que os engolem
com fome e lascívia

esses pequenos órgãos
não serviriam ao leite
ou à valsa de teus dedos
ou à tua língua
veneno aos mamilos

tampouco seriam acampamento
às guerrilhas da morte

esses tigres estraçalham
as carnes miúdas
e sem pressa
e fervorosos de abundância
se encaminham para o ventre.

 

 

 

***

 

 

 

Revoada

 

amanhã ou hoje
voar ao sol
para sentir o calor
sobre os ossos
esse que eu não encontro
em parte alguma
e que a ausência não consola.

 

 

 

***

 

 

 

Andarilho

 

somente as pernas sentem o gozo
e quando muito
os pés – as pontas dos dedos
adormecem e flamejam.

mas se o cheiro do líquido
chegar à língua
e nela se fizer um gosto:
tua estrada proclamou-se sem fim.

 

 

 

***

 

 

 

Tontura

 

eu queria a insônia de Mekas
e ser com ele
aquele verde
e aquele sol
e alongar o corpo ao chão
dissolver o corpo ao chão
mas a minha insônia
ela só me agarra ao cigarro
e tua companhia não existe mais
há solidão e bagunça
canção alguma a ouvir
a não ser a voz
de um homem
embriagado
na televisão
eu não consigo estar nesse corpo
depois dessa imagem:
a voz dele como reza
e os copos vazios.

Mekas não me dirá mais nada.

eu já entendi o pausar do desejo
já me deitei sobre a náusea
e sobre o vômito
e sobre o som do acordeão
teimo em escrever isso que vai sendo pedido
mas eu me quero sono, me quero silêncio
os membros são pedaços de fúria
e não há controle
todo o meu vibrar em contradição
e ainda existe o teu ciúme
e meus olhos sobre teu dorso inteiro
e um pensar até doer a cabeça
e um desistir de parar ou tentar.

não, Mekas, eu não rezarei ao além.

 

 

 

***

 

 

 

Coração ou fragmento

 

guardo em silêncio feérico
teu corpo viçoso
ligeiro e pesado
no meu corpo em pedaços

guardaria assim mesmo
se fora de leveza e ternura

queria poder fingir inteirezas.

 

 

 

***

 

 

 

Útero ou dissolução

 

escorrega desse sangue
o eco de teu choro.

escorre entre as pernas
a insensatez das palavras –
enquanto escavam o colo
tuas dez garras miúdes,
suficientes e exatas
para bem-aventurar a loucura.

e o útero,
berço nunca plácido,
da rasura,
da sobra,
da secura dos galhos,
dissolve o corpo inteiro,
tua morada.

 

 

 

***

 

 

 

Além da memória

 

A Sidney Souto
in memorian

 

o corpo não zera depois da morte
não estão nulos, os órgãos
eles se arranjam pelo espaço
os processos químicos prosseguem
e ele se entremeia na terra
e dança com ela, em silêncio.

também não zera depois do amor
mas visita um espaço
quase vazio, quase inteiro
e nele é quase místico, quase cético
quase terra, quase céu

depois do amor, o corpo é quase
um entre,
a não caber em escala alguma
como se fora poesia, mas ainda não o é

o corpo, talvez, zere aqui
nas palavras,
nesse dizer, um desdigo
aqui,
no buraco invisível,
imagem e só,
aqui, na palavra,
zero e infinito.

 

Sara Síntique é graduada em Letras Português-Francês e mestranda em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Nasceu em Iguatu (CE), em 1990, e reside em Fortaleza desde 2001. Autora do livro de poesia “Corpo Nulo” (2015, Editora Substânsia), também é atriz e performer.

 

 

Clique para imprimir.

Comente

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *