Janela Poética I

Teresa Coelho

 

Foto: Bárbara Bezina

 

estarei distante nos próximos 100 dias

 

[sem magia]
crio rituais para ser sozinha
como se a solidão
quisesse jantar
todas as noites
mas nunca chegasse a tempo
ela encontra meu corpo
recolhido
e
deita
em silêncio
como se cavasse uma cova
para uma multidão

desconhecida.

 

 

 

***

 

 

 

Construção

 

Este é o corpo
que funciona com
cordas suturadas
por andaimes
imaginários

o aço o sonho
o esquecimento
o sol o quadrado
o dia o estômago
o sexo o suor
as flores do outro
lado da rua
dançam todos
pendurados
sem grandes
promessas

—- Ouve o teu corpo
nascendo dos arcos inflamados
do fim de todo caminho
—- Ouve o teu corpo
nascer

Somente o que é possível
ser criado no vazio

– recitar poetas vivos
– boicotar o sex shop
– pular de viadutos esquecidos
– expectativas alcançadas.

 

 

 

***

 

 

 

a apoteose dos anos é o silêncio.

 

a última partida

quando soltei
a tua mão
descobri que nunca
gostei de futebol

perguntar sobre o jogo
era uma forma de
te amar
longe de mim
– hoje vago
como se estivesse
numa arquibancada
vazia –

[aquela escada
já desmoronou
pensei que tuas costas
fossem minha babel]

o último letreiro da partida:
“a felicidade é uma arma quente”

quando subi no ônibus
vi as janelas todas
decidindo
a loucura
o desastre
o grande desencanto final

rezei com todos os idiomas
do desespero
“protège moi
protège moi”

despi a cidade
com a violência
de uma criança

destroçada.

 

 

 

***

 

 

 

Isabel é codinome para partir

 

08h ela me acordou
08h30 eu assoprava o café
o café
doce demais
fraco demais
ausente
08h35 ela ajeitava a toalha da mesa
repetidamente
08h46 eu respirava mais baixo
09h ficaríamos em silêncio
perpetuamente

09h43 ela me comeu

11h57 eu ouvi o portão
gritar
entendi todas as cores
do mundo
todo o cheiro
desapareceria
todo o céu
seria uma parede rachando
uma rua em desencontro
um vulto do futuro

11h59 ela havia partido
definitivamente.

 

 

 

***

 

 

 

o outro lado do mundo alguém acerta sem saber

 

o amor devia ser assim feito preparar cuscuz
a gente mede a quantidade
com a xícara preferida
tem gente que nem precisa mais
mede pelo olho
pela boca
pelo cheiro
vai molhando aos poucos
e aperta
aperta
fica com a mão toda cheia de pequenos
cuscuz
porque antes a gente não podia
tocar
primeiro a gente molha
e desmancha as partes brutas

daí precisa esperar

porque o amarelo não vai brilhar
só vai absorver aquela água
não me pergunte como

a gente prepara a cuscuzeira
deixa uma outra água separada
porque o tempo vai fazer a gente
esperar
que essa outra água se transforme
mude de corpo
e encontre o cuscuz
para aquecê-lo

porque o amor deveria ser
o cuscuz na cuscuzeira
porque a gente sabe que não pode sufocar

o jeito que ele cai
nessa cuscuzeira
é determinante

não pode apertar desta vez
presta atenção
às vezes ele fica seco
às vezes ele fica molhado
às vezes ele vai embora
pelo ralo
porque

veja só

é muito complexo
encontrar alguém que acerte
pode ser a senhora da barraquinha de café
pode ser uma estrangeira
pode ser a sua vizinha

mas é muito difícil.

 

Teresa Coelho é recifense criada em Bonito (PE). Acredita no vulto dos desconhecidos, gosta de beber cerveja sozinha e lê poemas para as paredes. É graduada em Letras – Português/ Licenciatura pela UFPE. Publicou poemas na mallarmargens revista de poesia & arte contemporânea (RJ), no livro A TORRE: antologia de poesia confessional, cartas e diários íntimos (Castanha Mecânica, 2017), nas revistas Malembe (PB) Garupa e nos zines NAUvoadora (PE) Lambadaria (PE).

 

 

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