Flavio Caamaña
DIFERIR NA DURAÇÃO
o mar um dia me descobriu mas eu nunca descobri o mar
estávamos apartados por gírias por orçamentos
estávamos desunidos e desgrudados
éramos divididos por muros e fileiras
de campos minados e arames farpados
éramos dois desossados
esparadrapo sobre esparadrapo
eu e o mar
não havia sequelas visíveis não havia sístoles
não havia o amor amortecendo quedas
não havia sinais de trajetos ou de dejetos
no percurso de um alvo à salvo
dos atiradores de palavras
condicionados e incontinentes
treinados para enganar
treinados para fechar a geral
pode ser que um dia alguém conte essa história
e o mar desabe sobre as minhas costas
o mar sancionado e em estado de ressalva
o mar abraçado de burocracias
abocanhado até a ponta do último cais
e o mar nunca se descobre de igual pra igual
algo sempre se perde na hora da desova
algo de sobrenatural e aquela coisa e tal
eu e o mar aferidos na pressão
máquina contra carne
vontade sem vontade
verdade sem verdade
eu e o mar
***
SERVIL
se eu estou no fogo
e sou esta lenha
perdido no mato
um cachorro à solta
minha bagunça não cabe
nos bagulhos do doido
minha vida renega
o poema que afago
***
CURTO PRAZO
não é pela força que se mede um salto
cumpre-se a missão do corpo no espaço
desforram no ar as hélices parasitas
cumpre-se o que é dado e desmentido
não é pelo salto que se mede a força
o que perfura a sangue e violência
o que se desdobra de lúcida veemência
e um apurado silêncio de permuta
de tudo é a surpresa que se infiltra
de tudo a boca compra o alto risco
e a validade perde a justa forma
e a forma encontra um voo frágil
não é pelo voo que se traça um salto
e o leopardo morde-se na fissura
a mais primitiva forma de violência
os olhos não capturam na aterrisagem
***
PARTILHA
talvez ele seja abençoado por conhecer
a índole de seus carrascos/ talvez apenas
por falar uma língua e entender que quando
coçam os sacos não autorizam um perdão
que eu não consigo esquecer que ainda existe
o amor/ enxame de bolinações cravadas
que eu não consigo esquecer a luz acendendo
talvez ele seja abençoado por conhecer seus
carrascos/ trapos luxuosos beiços molhados
mendicantes de um beijo fuçando a garra
melindrosa de deus/ um feiticeiro e vidente
apunhalado pela lábia sapiente de odara ilê
pela caçada penitente/ um reles na trapaça
sua vida é um lamber de fogo esmaecendo
***
ORIDES
elevar o cavalo
a uma estatura
de ave
o tijolo
e o seu peso:
libélula
pelas rugas
fundas da face
florir a seda
os dedos
rígidos e murchos
despetalar
a beleza
atravessada:
espinho na cereja
***
DO QUE NÃO DISSE
arrependo-me das palavras que não disse
das latas que não senti o cheiro
da bebida diluindo-se nas poças de lama
aquecida pelo sol de sertões apodrecidos
na carcaça de secas esfomeando a rolinha
isso é alento isso é conversa
embrenhando-me no fumo amargo
de um amor letárgico
graveto no meio da sinuosa estrada
onde pneus sapeiam
goza se o veneno que vem do poema desvia-se da boca
e as palavras não sinalizam um retorno
nem despojo sei que cada frase não dita surrupia o ovo
de uma coisa que poderia ser grandiosa
e se recolheu num betume se esfarelou na estranheza
de antiquário e santo homem
de palavras eternas e perebas faltando
com a educação com o zelo cutâneo
pregado na apostasia
Flavio Caamaña é um trabalhador braçal e poeta nascido em Tamboril, desertão do Ceará. Atualmente residindo em Fortaleza, obteve primeiro lugar no XVI Prêmio Estadual Ideal Clube De Literatura, participou da coletânea “Golpe” e revistas eletrônicas. É autor de “Aquedutos” (Patuá, 2016).