Janela Poética I

Clarissa Macedo

 

Pintura: Canato

 

Desconhecida

 

As utopias acabaram
em nome da televisão,
um erro feito
pelo preço do petróleo

Eu te amo, tu me amas
e o verbo já não pode mar

Em nome de Cristo
muitas guerras foram dadas
em nome da dívida
uma tristeza no tronco do país.

Todos os mestres morreram
e na tua carne se desenha
traços que inauguram um título
baralho aberto no avesso da palavra,
asa feita de corpo e de coragem

O mundo agora
cruza um lago sem memória
e em alguns anos
estaremos mais pobres
mais burros
mais tristes
na alma e no prato (    )

Cresce um rasgo
em massa e sem história
na palavra-passe chamada pátria –
essa nódoa, essa traça
esse vazio imenso do nome
no mito de um tempo chamado aflição.

 

 

 

***

 

 

 

Faísca 

 

Ontem havia esperança
toda a esperança do mundo.
Hoje sou um estilhaço
um catálogo de dúvidas
e desejo.

Os pássaros não voam mais
e o dia que nasce
é o luto ordinário, grave,
posto sobre a mesa.

A boca diz o que o coração fala
e a dor é antiga:
chega, se instala
abre ocos na aorta, devagar,
para o aprendizado –
………………………………………do enigma

……………………………………….. da sutura
……………………………………………………..da ferida
……………………………………………………………………..da beleza.

Os fracassos… saúdam uns aos outros;
o que fica é o peso
a humilhação calcada nos olhos.

Digam que perdi:
que faltei às classes de empreendedorismo
e visitei às de angústia e miséria;
que não vou ao shopping
que rasguei os papéis e os comi.

Digam que perdi tudo:
a fé, o sonho, o dinheiro que não sobra

mas amo como se fosse eu o país
essa cavidade aberta
exposta, sangrando até a morte.

 

 

 

***

 

 

 

Versículo

 

1º Evangelho do Capital, 1, 1º. não derramarás coca-cola
em vão: / tomarás todo o néctar da garrafa não-reciclável;
/ não catarás os meninos e suas tampilhas, / ao risco de
ser apedrejado / ante a primeira vitrine; / patrocínio do
produto cuja etiqueta cobre o líquido do tiro perfurado.

 

 

 

***

 

 

 

Carnê

 

logo cedo a caminho do trabalho
olho a lista de coisas pregada na geladeira de 10 prestações
……………………………………………………………………………..[que não foram pagas
a mesma que congela ovos e óvulos da casa
a mesma que assiste na tv a cidadã que reza,
corta e mata em nome da moral etc. e tal
e que aparece no outdoor da cidade – esse espelho de
………………………………………………………………………….[simulacros;
geladeira que congela, escorre,
que não refresca a água da casa onde vive quem uiva sem
[presas a lista de coisas e a violência no coração seco do mundo

 

 

 

***

 

 

 

Arado

 

Nesta contrição feita de nuvem
o seixo que a conforma
é um sortilégio de canções
um sem fim que aflora
e deita à fera
um fio de água
que dos olhos brota

; assim entra no limbo
deixando fora as contas,
o salário baixo, a feira pobre
e até mesmo a nação
– esta que dói
por sangrar o cofre
deixando a nu os que plantam
e não colhem.

 

 

 

***

 

 

 

Rito

 

Sou uma tripa de pedras
que se escoam na ciclovia
das aves a morder o tempo
e seu desvão de tic-tacs

uma esfinge que choraminga
sem oráculo e sem os cactos
que não dormem;

tudo o que vive
é esta parede sem reboco
que observa, vigilante,
a goteira da sala
e se confunde com meu choro
a tomar as unhas, os canos
o cimento da massa;

quatro cantos
e os signos do calvário.

 

 

 

***

 

 

 

Certidão

 

Se pudesse
arrancaria meus nomes
um a um
para desbaratar
a lápide que me cobriu
na vida.

 

Clarissa Macedo (Salvador – BA), licenciada em Letras Vernáculas, mestra em Literatura e doutora em Literatura e Cultura, é escritora, revisora, professora e pesquisadora. É autora da plaquete O trem vermelho que partiu das cinzas (Pedra Palavra – 2014) e do livro Na pata do cavalo há sete abismos (7Letras – Prêmio Nacional da Academia de Letras da Bahia – 2014, em segunda edição pela Penalux, 2017 – 3ª reimpressão, 2019), ambos de poesia. Entende a literatura como ferramenta para um mundo melhor.

 

 

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