Jennifer Trajano
henna
como o reflexo que passa
rápido no negro da pantera
assim teu desenho suporta
meu corpo – tão suporte
quanto uma abortada fuga
paro um instante como
param as pequenas tartarugas
levadas pelas águas, das que
preferem não voar, das que
querem tua mão, reflexo que
passa devagar no tigre branco
– luz confundida com a pele
assim desejo teus dedos do
lado de dentro: como quando
se sente levemente o mar bater
na altura da boca, sem a agonia
dos lagartos dançando para pular
do bico das aves que tiveram medo
de atacar algo maior, porque o voo
é leve, o cigarro acaba, a dose se perde
no corpo. quero que dose as mãos
com a tinta da dor inventada e comece
a riscar meus pés, primeiro passo
no mar. depois suba como sobe o sal
ao sol, ardente, bronzeando o pelo
da pantera na cor do tigre branco
mas quando chegar à boca não afogue
empurre o corpo na onda que dá espaço
para outra anatomia, por não poder
jamais tocar apenas uma única pele
***
Maria na Procissão da Penha
oca em
sua oca
foi oferenda
devolvida
ardida
pelo sal
da praia
da penha
***
cirurgia
admiro as utopias que o cineasta
berri fez falar galeano
por dizer, sem ensaios, que
os sonhos impossíveis servem
para nos fazer caminhar
admiro a sensatez de borges
que narrou um encontro consigo
pois narrar é muito íntimo
admiro quem não precisa
de religião para negar o vinho
admiro as ginastas que parecem
ser o vinho quando dançam
em suas taças, de tão sangrentas
e leves, como a dor que se
esvai ao adormecermos cansados
admiro quem desaba porque deve
ser boa a sensação de reconstruir
às vezes admiro o silêncio dos
bichos presos só porque podem
fazer isso, aquietar-se
em mim a sensibilidade opera
está como a metafísica do vestido
que rasga sem querer e desnuda a pele
bisturí é o tempo. às vezes o corte sangra
***
energia
teu ódio não resta
no resto de capim
raiz inalcançada pelo
cavalo de madeira
não regressa
o dente
de leão solto
pelo tempo
não despedaça o
barco de papel
que navega
nas profundezas
não cerra
a pálpebra
daquele que
nunca dorme
não ergue
o feto
forçado
à forca
teu ódio é grego:
sangra
e em vão cava
a cova dos 300
é flecha que foca
o calcanhar
mas volta
às mãos de páris
constrói o oco
que em ti faz eco
e refazendo-me
se desfaz
no olhar da velha
com alzheimer
que carregou pedras
pras três pirâmides
mas num suspiro
de lembrança
sentou na areia
africana
e por algum
motivo
esqueceu
***
infância apodrecida
cresci ouvindo gatos
no telhado da casa
e fazendo as goteiras
inquietarem sonos
cresci ouvindo ratos
no telhado da casa
e sentindo goteiras
adormecerem sonhos
***
paixão
a asa se viu
pousada no costume
de ser mirada pelo caçador:
quando a ameaça
se aproximava
penava, mas não voava mais
***
fóssil
teu crânio em minhas mãos
e a imagem do canto mais
escuro de olhos
que tocam brancos
como se a liberdade
deixasse de ser sensação
e passasse a ter ossos
que ficam quando
a alma já não cabe
na estrutura da carcaça
Jennifer Trajano é natural de João Pessoa-PB, professora de Língua Portuguesa e revisora textual. É autora do livro de poemas “Latíbulos” (Editora Escaleras, 2019). A leitura do texto literário para ela é uma espécie de borboleta amarela (referência: Cem anos de Solidão) que pousa no imaginário para anunciar um novo mundo capaz de fazer chorar, sorrir, revolucionar etc..