Roberta Tostes Daniel
Naquela costa
as nuvens migram
para a espiritualidade
os cavalos as feras
seres deste mundo
conectados a uma
estranha palavra
o invisível também
é natureza
a linguagem cobre
o corpo
nossa energia
o que sai de nós
linguagem
como uma espécie
de aura
diz que somos excessivos
processamos
a língua materna
ela quer nos preencher
daquela paisagem
ou acontecimento
– um poema
deveria ser escrito
em um idioma indomável
para assim se tornar
poesia novamente.
***
Yosef
ele que voltava ao continente
ou que tinha por país sua fuga
o coração incerto como a fronteira
nome na deriva do rio, moldava
o que era rio e o que era abismo
carne não bem situada
o coração costurado nas trevas
este lugar mais silencioso
que o canhão antes do tiro.
***
“É-me o corpo todo”
à Leonardo Fróes
teso, mudo, vegetal
ao modo de montanha
e octogésima pedra
onde fundações flutuam
insinuado monge, alpinista
artífice das raízes e itinerário das matas
o que pode sem a selvagem justificação de deus?
abarcar-se no corpo-cordilheira do poema
***
Hórus
um olho que emite sua fratura
encarnada e múltipla – um escuro
que atravessa a luz do verão
um olho que é o aceso o outro
que versa sobre o fim
um olho-oráculo fendido na distância
pela certeza pelo furo
na pintura o olho é posicionado
francamente como em prisma
só a ausência de simetria importa
o desequilíbrio, o desfazimento que penetra
na costura dos órgãos
na luz vibrante
na sua sonegação
***
o que pode o corpo contra a montanha dispersa?
quantas vezes deliberarei o corpo
nestas paisagens tropicais?
me antecipei em achar minha feminilidade
mas no fim fui ao altar das conchas
e não mais saí de lá
sou a ostra aguerrida contra o céu gigante
constituindo sua periculosidade em pérola
e o sexo, embora um mero acaso
é também uma ética
com que nos comunicamos
nos semeamos, nos esgotamos.
***
Aos pés da cotovia
um pensamento é puro magnetismo
tem sal nos caninos
eu escuto o passo aproximado
de uma cotovia
é um som de errância gaulesa
e é à prova de som
chegar à casa desses pensamentos
apossada do escuro magnetismo
mensurar a visibilidade
desses espaçamentos
me sentir real
um desejo de ser real
de ser cada vez mais real
aos pés da cotovia
nas ferrovias, montanhas
no meu país interno
e no reino inventado do brasil
Roberta Tostes Daniel, poeta carioca, nascida em 1981. Publicou “Uma casa perto de um vulcão” (Patuá, 2018) e “Ainda ancora o infinito” (Moinhos, 2019). Possui participações em várias revistas literárias, no meio impresso e digital. Propõe imagens e acasos lá no @robertatostesdaniel (instagram).