Janela Poética I

Nívia Maria Vasconcellos

 

Arte: Zô

 

o corpo é uma foto no escuro

 

meu corpo
desumanizado
de impossibilidades

meu corpo
recomposto
na postagem

meu corpo
desfeito
pelo seu olhar

é escrito
com luz
porque tudo é escuro

 

 

 

***

 

 

 

maremoto

 

sophia mello breyner andresen
me sopra versos sobre o mar
enquanto o oceanário se distancia

o dragão-marinho-folhado
veio comigo na porção de coisas
que não se podem esquecer

seu corpo carnívoro
não é folha
não é cavalo-marinho
não é peixe-cachimbo

é uma das criaturas
que vieram desestabilizar
o que parecia pacificado no mundo

[como meu amor por ela]

 

 

 

***

 

 

 

3Poema

 

poema
é
..
de diferentes tipos

com
diferentes
modos
……de des/amarração

 

 

 

***

 

 

 

pequenas violências cotidianas I

 

cadê o namoradinho, minha filha?
entre uma colher e outra de sopa
indaga minha mãe
que faz parecer isso
uma mera curiosidade
olho para minha mulher a seu lado
largando o talher sobre a mesa
a sopa esfria em segundos

/numa pergunta tão simples
a negação de um mundo/

 

 

 

***

 

 

 

memento

a sónia brito

 

tudo se vai no
esquecimento

tudo nosso
tão digno
de lembrança

estilhaçado

ainda temo
cada tremor
de tua memória
que tropeça

o terremoto destruiu
a biblioteca real
e mais de 70 mil volumes
lá armazenados

por aqui também
presencio destruição

sou tirada
……..do corpo
de minha mãe
mais uma vez
todos os dias

como poemas que
se atiram aos cães

 

 

 

***

 

 

 

vascular

 

tenho que andar ainda que a casa não tenha água e o suor escorra em meu corpo ainda que o sol nunca vá embora mesmo à noite a secar a lagoa e suar o meu rosto tenho que andar ainda que cansada esteja ainda que não tenha pernas e acabe o fôlego ainda que os quilômetros nunca cessem ainda que a boca seja seca tenho que andar ainda que me faltem passos ainda que os líquidos a percorrerem meu corpo não matem minha sede ainda que o rio que ladeia minha casa não mate minha sede ainda que eu seja secura tenho que andar ainda que ao meu redor tudo que açude seja miragem tenho que andar pois a casa não tem água e meu lar está distante

 

Nívia Maria Vasconcellos é artista da palavra, atuando como poeta, ficcionista, letrista e declamadora. Entre outros livros, publicou A paixão dos suicidas (Selo João Ubaldo Ribeiro, Ano II), Cãibra de Nó (Prêmio Jorge Portugal, 2020) e OCORPOÉUMAFOTONOESCURO (Patuá, 2023). Lançou o álbum A Vênus de Willendorf com o grupo Mousikê, com o qual realiza apresentações literomusicais. É doutora em Literatura e Cultura pela UFBA e realiza pesquisa sobre poesia brasileira contemporânea, autoria, campo literário e oralidade.

 

 

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