Janela Poética II

Foto: Kenia Vartan



INALTERADO

Ana Vieira

 

Nada no espaço do peito, na mortalha do dia, na
luz na voz no horizonte no mundo na fenda que submerge,

a não ser o espelho líquido, a imprecisão embrulhada nos gestos aquáticos.
Os peixes sedentos no poente da escuta, no eco do grito, na mão que derrete.

Invento o bater do espelho a cair,
a gota, o veio, o corte na carne
desfeita.
A frase repetida, o inalterado, o sem cor,
a corroer-se inteiro por dentro, a escorrer pernas abaixo como lava que desencandesce e se agarra, se infiltra, penetra cada poro

congela em pedra dura um coração colosso.

A dor nos dedos
no espaço,
na espera, na curva,
no fio da teia da aranha.


***

 

Faço-me solidão em silêncio.
Faço-me solidão espécie suicida de muitas idas e
nenhuma volta
nenhum retorno
nenhum escudo.
Nenhuma pequena vala comum no fim do túnel.

Faço-me sozinha e às vezes aflita.
Sozinha e por vezes contrita fechada
por dentro desse silêncio à força de escrever aos gritos.

Faço-me sozinha e às vezes aflita.
Sozinha e às vezes cativa aflitamente cativa
da solidão e do silêncio opalino
da tua voz.

 

(A poetisa portuguesa Ana Vieira Pereira é mestre e doutora em Letras pela USP. Mãe de 7 filhos, publicou contos, crônicas e um volume de poemas, “O que sobre vive”. Mora atualmente em Araraquara/SP e escreve porque, como os demais, precisa de oxigênio)


 

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1 comentário

  1. & os estilhaços do que somos
    se amealham, disformes
    em versos dissolventes.

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