Janela Poética II

Edson Bueno de Camargo

 

Foto: Peterson Azevedo

 

 

as pálpebras

as pálpebras
alquebram
em sono senil

as sombras
são pedras duras
de quebrar
em sonhos

o pão
não alimenta
a mão
que morde
os dentes da fome

a palavra vai
para além
destas fronteiras agudas
repousam na língua

ali se cristalizam
em gotas calcárias
e músculos

 

 

***

 

 

todas ausências

 

1

o menino
seus olhos de pires
emulando uma coruja
e o brilho de pios agourentos

facilmente se assusta
e o tempo todo
foge do dia

dentro de seus sonhos
todas as noites
cobras engolindo pedras
digeridas
carcomidas
defecadas
em limpos diamantes

tudo sob um céu azul cristal
dia eterno
e os olhos bem abertos

2

a menina tímida desengonçada
tem os olhos
rasgados no rosto
trabalho de arado cirúrgico

o útero
sempre à luz do dia
a luz do mundo
à vista de todos
aos que quiserem ver
e aos que não

não se admira
ter tido cria tão cedo
a crianças semitransparentes
que nunca tiveram
solidão ou escuridão

sonha com serpentes
vagando em desertos vermelhos
o cheiro de sangue nas ventas
e o rosto materno nunca visto

3

à noite
menina com lágrimas e espigas
senta-se sob a grande árvore
sob a sombra da noite

chora por todas ausências
os filhos
sempre alçam voo
assim que nascidos

 

 

***

 

 

a fome

 

recobrou o olho
e este tinha fome
a fome insaciável dos olhos

e o olho cobrou a fome
desde os tempos imemoriais da fome

o quanto dar de comer ao olho
se este não se sacia

quanto de velhas fotografias
tanto de livros amarelos
jornais dobrados até se tornarem quebradiços
cartas de amor não correspondido
e flores e frutos secos guardados em gavetas

quanto de moedas antigas
de quinquilharias

a fome voraz de papéis velhos
e dedos envelhecidos
óculos para miopia

de tantos e todos tempos e temperos
que calaram em renascimentos

e aí se destilou o dia
com a luz coada
de olhares furtivos pela janela
e seus vidros ensebados e turvos
………………………………………………..cor que se esmaecia

 

 

***

 

 

a parte que te cabe

 

para o amigo Celso de Alencar

 
Circe
amarrou a Ulisses
não com correntes
usou os músculos de sua vagina

mesmo estando em êxtase
a saudade de seu chão
e do cheiro do esterco das ovelhas
o chamavam para casa
e se libertou

Circe disse fica
mas Ítaca clamou mais alto

o esperava em casa
uma vagina mais mansa
e doméstica
sem grandes bailados
e malabarismos
mas que demonstrou um furor selvagem
ao se fechar aos machos
que não eram para ela

e na vingança e na morte
se abriu em sorriso
enquanto seu homem
trespassava seus adversários com flechas

nas noites que se seguiram
Ulisses não sentiu saudades
da insaciável bruxa deusa

Penélope
cansada de tecer
exigiu a parte do homem
que lhe cabia

 

 

(Edson Bueno de Camargo foi operário da indústria, dentro de uma realidade suburbana. Muitos de seus primeiros poemas foram escritos no “chão da fábrica” com cheiro de máquinas. Escreve desde muito jovem, sempre muito prolixo. Na maturidade, passou a ter uma relação com a poesia que vai para além da literatura, a poesia é sua experimentação do sagrado. Escrever poesia é seu tempo do sonho. Os poemas aqui presentes fazem parte de seu mais novo livro, “a fome insaciável dos olhos”, recentemente lançado pela Editora Patuá)

 

 

 

 

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2 Comentários

  1. a poética de Edson exprime um tanto do mundo que sei e gosto. e gosto muito muito. salve a poesia em Edson Bueno de Camargo.

  2. o bueno me agrada de uma forma que me chancela o ventre, se posso assim dizer, uma forma feminina de dizer, no sentido mais profundo amigo e ancestral do que sinto por ele, sua obra, sua família -indissociáveis, sua vida.
    posto que é poeta assim.
    quanto mais poesia mais poeta ele é. ele está muito poeta esse rapaz.

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