Janela Poética II

Mar Becker

 

Arte: Julia Debasse

 

PERSÉFONE – I

 

penso na mulher que é inacessível como uma estrela de  sal.   um
cálice, uma chaga em backing vocals  no cair das horas.  penso na
mulher que pensa na palavra, e a palavra então se faz  aos poucos
nas bocas das demais mulheres: e a palavra se faz, com a matéria
das flores sonâmbulas e do marfim.

 

 

PERSÉFONE – II

 

sonho ou assédio
lunar,

meninas que se desgarram de si mesmas,

meninas que flutuam como abajures mortuários em torno das bonecas. depois se abaixam para beijá-las na testa e imantar seus corpinhos de pano com relâmpagos.

*

meninas que não falam, magras,
inacessíveis,

tantas meninas, e são altas, e cheiram a algodão e lágrimas.

nos cabelos um nevoeiro de teias de aranha. na pele os sinais em sete eclipses: lua ilícita, lisérgica. a sombra no púbis, no ânus, nos covis das axilas. uma única e mesma noite atravessa os séculos pela boca das mães até a boca das meninas,

e das meninas às bonecas,

num processo difícil de perpetuação
da fome.

 

 

***

 

 

porque eu te amo

desenho teu rosto como abertura, milagre
qualquer dessas coisas que têm precisamente a ver
com o mar, a noite
o pássaro

porque de fato não caberia desenhar teu rosto como desenho
porque eu te amo

uma abertura
um parapeito de sons de sinos sutis
uma palavra com vista
para o mar, à noite

ou para isto que é precisamente o corpo de aléns
do pássaro

da travessia do sangue

teu rosto em teu rosto, apenas
meu amor

 

 

***

 

 

“para domenico a. coiro”

 

além da pele

a palavra

além da palavra

o poema

assim ela entra em tua respiração

em teus modos de ser prenúncio e desvio

para o fogo

o fim e o início: além

polifônica, viva

mulher-pássaro

pele-palavra-poema

o sangue em tuas noites incendiárias

assim: e sobe, enfim

indefinidamente

 

 

***

 

 

[HÁ PALAVRAS…]

 

há palavras para as quais
não há palavras

não se pode vê-las a olho nu, vivas
não se pode atravessar
turvar
o espelho

são
nenhuma
numa

e tantas

e se perdem de si mesmas

todas as palavras-luas virgens como pele: pálidas
à parte do que digo
do que dizes

refletidas
impelidas pelo desejo

da boca
na boca

 

 

***

 

 

[COMEÇARIA DIZENDO…]

 

começaria dizendo o que não posso

que teus suores formam hieróglifos de sal na pele
e que um rosário misterioso se enrola a teus pulsos quando me amas

começaria dizendo que tua respiração tem vista para o mar
e que à noite me debruço ali, silenciosamente

meus cabelos de água-viva
minha língua de virgem
madrepérola

e que à noite

e que me debruço e morro
em tua respiração

 

(Marceli Andresa Becker é formada em Filosofia pela UPF, cursa Especialização em Epistemologia e Metafísica na UFFS e trabalha como professora. Mantém o blog De Ter de Onde se Ir)

 

 

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1 comentário

  1. Acho tua poesia super feminina, e isso é um elogio.

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