Janela Poética II

Adriana Brunstein

 

Suzana Latini

Foto: Suzana Latini

 

A primeira vez que te vi
não teve a Teresa
de Manuel Bandeira
Eram minhas as pernas estúpidas
Eu andava em L
feito cavalo de xadrez
Eu tava com o dedão do pé inflamado
por conta de um alicate não esterilizado
Eu tava descalça
por conta do dedão inflamado
e do alicate não esterilizado
Eu pensava num roteiro
prum filme de ação iraniano
Eu carregava o cartão de um marceneiro
pra que ele derrubasse as certezas
que eu ninava na parte de cima do beliche
Eu quis te fazer uma carícia pela metade
e te receitar suplementos vitamínicos
aqueles cheios de abecedário
Pra que entre nossas palavras
cruzadas
os espaços fossem grandes demais
para fim

 

 
***

 

 
Esse teu gosto por contravenção
Teu talão de zona azul escondido
entre dobras de bebês recém-nascidos
Tua impressão digital no copo de isopor
que apita ardido quando mastigado
Teus retalhos disfarçados
num tom Flicts do Ziraldo
Tua costura remendada
com fios de pescar tainhas
que antes nadavam na banheira
dum velho militar aposentado
Tua mais bonita caricatura:
a loucura
me disse um dia:
eu te amo
Eu não acreditei

 

 
***

 

 

Tenho o nome de outro cara
tatuado no cóccix
caso você queira saber
antes de tirar a minha roupa
que as coisas pra mim
mesmo as que não se apagam
não duram muito tempo

 

 

***

 

 
De esquinas engarrafadas de guarda-chuvas
De porteiros noturnos sozinhos em guaritas
De famílias de policiais abatidos
De trincheiras incorporadas a mapas
De sofás lotados de manifestantes
De máquinas de pinball ao som do The Who
De bilhetes só de ida
De divãs lotados de arquétipos
De roupas pingando no varal
De cem flexões em espreguiçadeiras
De chaves rodando em falso
De sessões da tarde sem Ferris Bueller
De índices bovespa de dores crônicas
De garotos café-com-leite em jogos de queimada
De novas grafias para palavras em desuso
De radares avariados por pedras
De best sellers sem Peter Sellers
De Bruce Willis desistindo
de uma vez por todas
de salvar o mundo

 

 
***

 

 
A gente envelhece
dormindo às dez
acordando às seis
ameaçando pernilongos em voz alta
antes de errar o tapa
A gente envelhece
medindo a circunferência do braço
evitando usar regatas
se cadastrando em site de receitas
e consultando horóscopos
A gente envelhece
dormindo de meias
falando pra manicure
no pé um rosinha básico
A gente envelhece
cantarolando a música
de Ao mestre com carinho
descobrindo na wikipedia
que o sidney poitier
ainda tá vivo
A gente envelhece
recusando convites
lembrando que piqueniques
eram chamados de convescotes
nos clássicos que não lemos
A gente envelhece
gerundiando
esperando uma oferta incrível
da garota do telemarketing

 

 

***

 

 

Os primeiros planos
para saídas de emergência
traçados ainda
nas barrigas de nossas mães
falharam
E completamos
diariamente
40 anos
ou mais
em meio à multidão
que corre
sabe-se lá para onde
nos labirintos arquitetados
da estação
sem luz

 

Adriana Brunstein é PhD em física, escritora, dramaturga e roteirista, com trabalhos em várias vertentes e meios da comunicação. Ganhou o prêmio HQMIX 2008 de melhor roteirista nacional pelo roteiro da Graphic Novel Prontuário 666 – Os Anos de Cárcere de Zé do Caixão e foi contemplada no 13º Cultura Inglesa Festival pelo roteiro do curta-metragem Olhos de Fuligem. Publicou o romance Estado Fundamental. Vive em São Paulo.

 

 

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