Janela Poética II

Rita Isadora Pessoa

 

renata-ragazzo

Desenho: Rety Ragazzo

 

“a paixão segundo”

 

mordo e observo partes duras
movendo-se na oscilação entre
luminosidade e desaparecimento.
mordo,
em busca de algo que reflita luz, sem
pontos de interferência, sem
sobreposição de planos sensoriais,
essa sinestesia opressiva que anuncia
que toda alegria é temporária.
ando mordendo a ponta dos dedos,
mordendo as páginas estrategicamente
abertas
e a essas alturas do quase verão
do rio de janeiro,
eu preciso de neve como quem precisa
acordar de um sonho excessivo,
lindo sim, mas
com a beleza descomunal
dos colapsos e vulcões despertos.
tenho sentido uma compressão lenta
da alma, como se estivesse me tornando
uma pessoa pequena aos poucos, diminuindo
milímetro por milímetro, ainda assim
mantendo as proporções,
como uma anã liliputiana de Rosa Montero,
aguardando o eventual desaparecimento.
“é um engano”, é o que você diria,
e eu ainda estou esperando,
estou esperando que você me diga
“sim, você está enganada”, mas eu não estou.
sim, pequenas surpresas ardem na virada do dia,
mas não estou enganada quanto a isso:
hei de inventar um outro nome para isso que morre
na virada do dia e renasce bicho difuso, ainda sem
penugem, sem consciência
da metamorfose que guarda em si.

 

 

 

***

 

 

 
“síndrome de estocolmo”

 

[ …..isso é o ensaio de algo?…… ]
, você me pergunta na porta
………..do quarto – os hiatos
em meu discurso abertos à tua
observação, ao teu toque ruidoso.
…….centro ….e margem dispostos,
como num jogo de tabuleiro
e eu peço um tempo para responder,
pois não sou boa com cenas, com cri-
anças ou fogões, você sabe e sorri teu
sorriso netuniano. eu meio que desvio
o olhar e busco, nas paredes de cal,
por um orifício, um traço que turve
………o teu corpo solarizado, bruto,
logo você me pergunta, irisado
de repente:
[….. mas isso, isso tem nome?….. ]
……………..não, eu digo.
volto-me para a cama, desolada, pois
estes lençóis freáticos de crisálida
…….em desalinho, desaguam
…….no mar
…….e não retornam jamais.
………………………e esse é o ponto angular
da tua célula terrorista, amor,
cá estamos a lutar pela terrível liberdade
de bater os dentes , tremer de fome,
sede, amor,…………………. hipnotizados
[…. e agora, ainda é um ensaio? ….]
…………….pela oportunidade
de morrer, amor,
de morrer de medo.

 

 

 

***

 

 

 
“nascimento de vênus”

 

 

……primeiro
……………hei
……de lavrar
esse teu mar
guardando
……..na terra
.o que funda
……..o seco

…….é preciso
toda uma era
para indicar
….o nascimento
…………..da ilha
………..e seu eixo

…..imprimo
de ….leve
na tua imagem
.ossos inteiros
…..e tua dupla
Exposição
…..emerge
…….óbvia
..tal qual paleta
…..de cores
….primárias
no auge do verão

cai a tarde
e circulam
..silêncios
como aves
em torno
…….de um
coração
que parte
…..à vela

inteiriço
………ainda que
……curvo

 

 

 

***

 

 

 

“diário do ano da cabra”

 

{caro centauro}

 

decidi ignorar
solenemente
o som de seus
…………cascos

soterrar
essa mulher
de mistérios
alagados
bárbaros

porque isso
NÃO É
um poema

porque o ano
da madeira
[suas lascas
goivas foices]
termina aqui

~lembre-se
de que isto
não é um poema~

………………é que
………………morrer
d.e.v.a.g.a.r.i.n.h.o
……exige fleuma

delicadeza suprema
.uma certa finesse
..que não possuo
…………………:….não é
…………………..fácil cair
…………em…. câmera …. lenta

 

 

 

***

 

 

 

“dos rumores que se instalam”

 

….não posso dizer que
..ignoro com seriedade
a consciência do medo
……………nas gengivas
e a eletricidade que alimenta
o corpo venoso brutal
da vergonha porcamente
equilibrada nos joelhos.
………como é possível
que a despeito de tudo
………as gentes sejam?
que sejam com pavor,
e dentes caninos a mostra,
……………..mas que sejam.
a mim, é impossível
deslizar com graça
por essa existência
de pequenos naufrágios
de impossibilidades rotundas
de quebra-mares.
ouço um fino assovio
…………..que assegura
o cativeiro de muitas feras
nos porões deste navio
……..e sei dos rumores
instalados, pesando sobre
grossas cordas e velas içadas:
o coração batendo vivo
no fundo desta caixa.

 

Rita Isadora Pessoa nasceu no Rio, em 1984, é graduada em Psicologia e não graduada em Estudos de Mídia. Estudou a poeta Sylvia Plath, no mestrado em Teoria Psicanalítica (UFRJ), e é atualmente doutoranda em Literatura Comparada (UFF), onde estuda o duplo em sua modalidade animal. Trabalha como tradutora, revisora, astróloga e taróloga. Seu primeiro livro de poesia, “A vida nos vulcões”, foi lançado no final de agosto de 2016 pela Editora Oito e Meio.

 

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