Rita Santana
ANDORINHA
As andorinhas existem!
Saíram das páginas do livro
E resolveram viver
Nas alvenarias
Do invisível.
Mas a tua ausência dentro de mim é puríssima dor.
Não há voo que dissipe minha esperança.
Nem vento, nem rosa, nem crença
Que suavize a melancolia parasita nos ossos.
Alheios desejos nos levaram
Para ilhas opostas:
Tu foste para Creta.
Eu, para o Crato.
E do anonimato dos dias
Tenho feito poesia secreta
E prosadura.
***
CÂNHAMO
O tempo envelhece o telhado
E desola os meus ovários.
Teço cânhamo em São Luís.
Teço o dia inteiro,
Teço a noite inteira,
Teço em todas as horas do meu dia
O tecido que não vestirei.
Invado rios em busca
Das dunas e me acanho diante
Do teu nome de assombros
Diante da tua boca de veleiros
Que não me deixa falar
Diante da tua presença
Que não me deixa existir.
Minha terra tem buritis
E no meu coração
Há um curso de cicios silenciados.
Discursos emudecidos.
Há emaranhados de maranhões em mim.
***
LANGOR
Há sol demais na paisagem.
Moinhos de vento
Atormentam meu dia.
O casario recolheu o rutilar
Da minha vontade,
E eu, à sombra, deitei minha vocação
De campesina.
Minha boca pede água,
Somente meus pés pedem língua.
Tenho cansaço nas veias
De tanto deixar tecidos
Soltos no caminho.
Pescoço dança violoncelo,
Cintura requebra em violinos,
O meu vagar já é tão certo
Quanto a infelicidade dos dezembros.
Vem! Rega meu baixo ventre
Com aquilo que, em ti, é abundância.
Mas não venhas com esperas!
Estou mole, mole.
Quero abrir-me as pernas ao vento.
***
RECEPTÁCULO DA BONDADE
A minha infelicidade vem da tua casa à beira-mar
Vendo-me correr o meu vagar pela praia.
Sei da tua ausência pelo cheiro,
Pela falta de vida nas ondas.
Eu, cega em antigas saídas da alma,
Não quero meus textos frouxos na tua película
De vinhática virilidade servil.
Tampouco quero o teu francês na minha língua,
Tramando aturdimentos.
Não quero a tua delicadeza fingida
Dedilhando minha vagina expressionista.
Bem certa estou de que tu és
O delator dos meus delitos.
Não quero o teu anel roçando
O meu desejo lírico com promessas,
Nem profecias proféticas
De outra vez amar,
Amar o mar da nossa terra.
Não quero meu livro de versos íntimos
Entre teus dedos,
Imunes à eternidade das ostras negras,
E aos lírios lilases do meu quintal.
Nem quero saber dos teus dias de suntuosidade,
Durante a minha ausência paladina.
Sou a mulher por quem a tua esfinge procura
Nos pesadelos cheios de gozo e fortuna de afeto.
Sou toda brusquidão e rudezas de amor,
E rezo por nós dois à toa, sem estações,
Sem toadas nem eras, nem bolos de carimã.
Quero pousar no teu dia vez ou outra
Para assoprar tua gravata,
E desatar os nós do teu sapato lustroso.
És bárbaro,
Na arrogância dos diamantes
Que escapam do teu palato duro.
Deixa-me dormir em paz!
Sem que interrompas o meu sono
De exaustão operária.
Dez horas depois,
Está a acariciar meu sono de menina eterna,
Ao som da tua desgraça de poeta sem portas,
Sem machados nem cancelas.
Quero ofertar minhas soluções e meus soluços
À face do que em ti é Absoluto e é Eterno.
À face do que em ti é Amatividade e Amavios.
Apesar das derrocadas, das implosões,
E dos mistérios escolásticos da penitência.
Quero, hoje, ter saudade de qualquer vertigem
Que tenha sido nossa,
Qualquer ilusão
Que tenha saído da tua honradez absoluta
De macho curioso por meu mutismo.
O meu pai morreu sem te ter à mesa
Ofertando ao velho a minha condição de ser tua,
E de querer de mim o meu grande ventre
De mulher bem parideira e fazedora de sonhos.
Deixa-me dormir nas calçadas,
Sem teu ódio vencido
De macho traído
Mil vezes por esta fêmea que te adora.
E que por isso busca em teus pares
Relíquias do teu cheiro.
Busca em teus pares a tua pele nobre de rei etíope.
Busca, na verve dos teus discípulos,
Vestígios de tua fome sobre o meu corpo exausto.
Por isso, busco nos teus consanguíneos
Alguma razão para o caos da tua inapetência
Diante dos meus propósitos de mulher.
Eu, este receptáculo da Bondade.
***
BÊNÇÃO
Apeio o peito sobre a saudade que arde a carne,
Sem consolo possível no solo das desesperanças.
Herdei de meu pai pujanças, bravezas,
E de minha mãe a fragilidade animal das fêmeas.
Por isso tenho tudo!
Posso despregar o afeto como macho cansado faz,
Posso abandonar as armas, trêmula, porque morro.
Tenho grandes, pequenos e verdes medos,
Sou mulher de agora, de hoje,
Tenho hábitos de galo e caprichos de galinha.
Falta o dicionário farto em suas doações doces de fonemas,
De raízes, arcaicas presenças de verbo.
Doarei o dia à paz, ao abandono das preocupações.
Tratarei da poesia, minha parceira de demolições e alvenarias.
Quem me dera só ser, sem bruscas mutações,
Mas o corpo oscila na regularidade do ciclo.
Endoideço alguns dias porque virá a sangria
E entrarei no templo das penitências,
Fitando meu Deus com acusações humanas.
Sou esse fruto peco das diásporas,
Minha veemência é minha mordaça,
Assim têm sido meus dias de santa, casta, pacata,
Senhora de um Deus-homem.
Desacato porque sorvo substantivos, substâncias,
Essências de nomes, dores, fantasias.
Desacato porque sou poeta.
Tenho língua de fontelas, hildas.
Sou muito brava para donos
E afeita a clamores de desprotegidos.
Tenho tudo sob meu viaduto-castelo.
Sou rata e rainha.
***
LIVRO
Lanço-te, marujo!
Urge o arremesso do desbravamento,
O amansar da fúria contida nos dicionários.
Estende o teu olhar pras gentes e vê o que querem.
Vê o paladar apurado do povo,
Agita os braços ante o infante de leituras.
Dou-te todo o meu mar salgado,
Minhas mulheres que choram e riem alto,
Minhas noivas dispostas ao divórcio das prendas,
Arquétipos da minha avó cabocla.
Vai, marujo!
Arrisca teu perfil às tintas, ao incesto das editoras,
Aos naufrágios à beira da porta,
Aos críticos que rasgarão teu ofício de dias.
Vai, portuoso!
Beija na boca todas as mulheres que querem teu beijo,
Todos os homens dispostos ao risco,
Abre teu pórtico de páginas aos servos, aos escravos,
Aos que vivem sob vigências de feudos modernos.
Vai, marujo! Gruda nas casas novo ato de liberdade,
Conspira com os nossos,
E toma da noite sua embriaguez,
Sua inspirada subversão de Musa.
Vai, marujo!
Lança-te ao Mar com tudo que nele há
De Pessoa, de Neruda, de Carlos, de Adélia,
De Cora, de Bandeira, de Clarice, de Lorca.
Vai! E afoga meus navios velhos, viola minhas certezas,
Viola minhas mentiras, meus fingimentos de Poeta,
Viola minha caixa de Pandora,
Meu anonimato, meu suicídio diário,
Minha textura de negra, minha candura de puta.
Vai! Antes que eu me lance sem âncoras,
Pois que deixo velas, remos e medos muitos.
Rita Santana é atriz, escritora e professora de Língua Portuguesa na Rede Estadual de Educação do Estado da Bahia. Em 2004, foi uma das premiadas no Braskem de Cultura e Arte para autores inéditos com o livro de contos Tramela. Logo depois, o seu livro Tratado das Veias (poesia) foi publicado pelo extinto selo Letras da Bahia, em 2006. A Editus publicaria o seu Alforrias (poesia) em 2012. Participa da antologia Outro Livro da Estante organizada por Herculano Neto e publicada pela Mondrongo em 2015, com o conto Ondas, Trânsitos e Trilhos, além de ter o seu poema Adusto publicado na revista organismo, projeto do Editor Jorge Augusto, organizada por Ederval Fernandes e Alex Simões.
Bom este poetar de Rita Santana ao revelar que a verdadeira poesia está nas adjacências.
Muito feliz com suas palavras, José Carlos! Obrigada. É reconfortante e encorajador encontrar leitores sensíveis à nossa Poética! Um forte abraço!
Grande poeta. Deu pra notar logo quando li que um foi pra Creta e outro pro Crato. Saiu-se maravilhosamente bem nos poemas curtos e sustenta a nota nos longos. Boa surpresa, pra mim.
Obrigada, Waldemar José! Muito importante o seu registro. Um grande abraço!
Sorver-te em versos é sempre um bálsamo que penetra minh’alma e me abre as janelas do encantamento.
Obrigada, Tereza! Fico feliz em ver sei comentário, em sentir sua Delicadeza! Obrigada!