Denise Pereira
Acto Segundo
Vives.
Respiras.
Tens volume.
Odor.
Revelas-me o mistério do que é táctil.
Do que existe para além de mim,
e que regressa mudo,
entranhando-se na pele,
o maior órgão
do corpo
humano.
Ainda mais humano.
Aqui.
Em contra mão.
Em contraluz.
Ondas.
Sete até ao rebentamento.
Esquecer as listas,
o léxico,
a lengalenga das preposições,
a dor nas mãos
quando havia esquecimento.
Descoberto
O significado último
de apontar para o céu.
Aqui.
na pressão variável
do teu peito.
No ritmo doce
de dois pulmões,
transcreves
a mais cândida estrofe
sobre
ser.
***
Hemofilia
Passar-te nos dedos os papéis em corte.
Deglutir sincera na direcção oposta.
Por um triz levaste nos bolsos um esboço sorrindo.
Uma quase neblina que em raiz perdura.
Estancar-te na ferida que abres ainda,
Na generosa oferenda cálida do magma
antes de explodir,
Em sabor bélico,
Difuso e torto na mucosa efervescente.
Repete-me:
um corpo nunca é apenas um corpo.
É antes um choque em cadeia numa auto-estrada coberta de chuva,
a um domingo.
***
Café Curto
Cortada e sorvida metade da laranja,
passei os dedos na aplicação.
Esquerda.
Direita.
Repeti. Infinitas vezes.
Tu em nenhum quadrado.
Só naquele quadrado tão teu,
tão pendurado no avesso
da nossa interrupção.
***
Ilusão de óptica
O poema surge da justaposição dos corpos.
Das arestas erodidas pelos fluxos em contacto.
Preparo a passagem do testemunho.
Evitando ouvir as tuas mãos trémulas a cair em caixas.
Cantando-te no desaparecimento sôfrego dos náufragos.
Aperto o volume indefinido da estafeta.
Tapo os olhos túrgidos enganando o pragmatismo das listas.
Repetindo a sede paciente do que é inevitável e intemporal.
O início tosco do verso resistirá na penumbra da raiz.
Respirando em segredo segundo os compassos do nosso encontro.
Vai descendo o testemunho pelos teus olhos que se afastam.
Temos apenas um segundo antes de tudo ser já estrofe e harmonia.
Um rasgo subtil de instantânea clarividência.
E aí saberemos.
Sim, somos um novo poema.
***
Linha Mestra
Não sei se da pálpebra,
ou da coxa,
augúrio ou despedida.
misturas,
ou um eco
pálido
das suturas quentes.
linha vermelha.
O alarme dissipa
a óbvia pergunta sobre disparidades.
mão que se pousa,
ou se imagina pousada.
ténue.
segurança proscrita.
linha vermelha.
Não sei se sorrisos,
ou silêncios.
na surpresa só o atraso.
o atraso de ter,
ou de nunca ter tido.
de saber que se foi,
que se demora no regresso,
que na forma se engana.
linha vermelha.
Faz-se da espera um verbo.
Os caminhos são curtos.
Os narizes rectilíneos.
Nem uma sílaba se toca
entre os nomes e os
versos.
A linha não quebra,
nem aproxima.
apenas existe.
e revela.
***
Acto Sétimo
Nos padrões pulsão que paralisa.
Abstraída nos cortes transversais,
ser-se mono ou dicotiledónea apenas.
Puxar lustro a imaginados cones,
Pressentir os dedos húmidos
na destreza lenta das folhas.
Permanecer quieta na certeza de que só cresce
suave.
Ser a rainha do meristema apical.
Dominar assim a latitude e longitude.
Prender amostra na lamela.
Ser-te no corte e fixar-te o meio.
O prazer condensa-se pelo recorte oculto.
um secreto decifrar ambíguo de corantes,
ora parede espessa ora comunicante.
Excitação que cavalga nos contrastes,
labirinto redondo de células côncavas e convexas,
fixar a ampliação e rodar o foco,
soltar a cada mês o acto redondo da origem.
Nem meristema nem membrana vegetal,
toda eu animal
em vertigem compulsiva
de rebobinar e premir play.
Gastar toda a actividade mitocondrial
em overload sensorial
sem conquista ou consequência.
Fascinada pelas palavras e a sua musicalidade e ritmo, Denise Pereira começou a escrever os seus primeiros poemas aos dez anos. Em 2011, começou a publicar regularmente os seus poemas e textos no blog “Janela Inquieta”. É doutorada em História, Filosofia e Património da Ciência e da Tecnologia, pela Universidade Nova de Lisboa, tendo escrito uma biografia do Psiquiatra Luís Cebola (1876-1967), um dos pioneiros da arte-terapia em Portugal. Em 2015, escreveu uma performance músico-poética original – Marioneta Inquieta – que, desde então, já foi a palco inúmeras vezes em Lisboa e em Berlim. Em 2016, mudou-se para Berlim, onde reside atualmente. Alguns dos seus poemas foram traduzidos para alemão pela tradutora e autora Christiane Quandt, a propósito do festival e publicação Stadtsprachen.