Pedro Vale
É preciso viver sem paixões.
Permanecer morto ou vivo até o fim.
Mergulhar no absoluto anonimato,
Aclamar o tumulto escuro e bruto.
Encenar o drama clemente e lento.
Sentir um amor ideal por anjos nebulosos.
Descobrir um novo fundo de poesia e aguardar
uma voz que nos ordene docilmente:
– Não te movas, nem te inquietes,
nem traias o que
ainda não
és.
***
O poema aquece
as montanhas
quase sem voz
e relativiza a fúria
Inocente e letal
Do vento
***
Talvez um dia recordes
num qualquer espelho torto
quão simples fora a tua salva
e te lembres daquela vez
em que ceáramos apenas meia
laranja e nada de pão naquela casa cega
com o telhado a verter lágrimas
de fel.
***
Porto
A poesia vai
Pela rua,
Nua.
Esconde-se
Nas manhãs mais
Frias.
E é à noite que lhe foge
A voz.
Lenta
E lenta,
Lentamente,
Até
Desembainhar
Na
F
O
Z
***
Cisma
em mim um
conceito,
quase uma
ordem estabelecida.
– o desejo.
Quanto
menos o
pratico,
Mais
se manifesta e me
surpreende por
excitante e novo.
Glicínias.
***
Por vezes
Acontece entrarmos
Num maravilhoso jardim árabe
E sentarmo-nos logo ali
No primeiro banco de pedra lisa
Imaginando o azul do mar.
***
Hoje acordei com uma andorinha no estômago.
A noite era de tempo limpo e sono.
Sabia a quebra milenar, cabelo solto.
Nenhuma angústia, lei, mato ou víscera defronte.
O prédio seguia o seu curso normal de vida, espécie de abrigo impune.
Gineceu.
Observava sem capacidade estrelada o céu, quando a miúda astronomia me
Espantou a inocência.
A circular impressão se revelara.
Tal como no meu estômago, assim uma via-andorinha, se alongava, qual
fita emprestada, distraidamente, no ar.
Pedro Vale vive no Funchal desde 2002 onde é professor de primeiro ciclo desde 2002. Cursou Ciências da Cultura e frequenta o mestrado em Gestão Cultural na Universidade da Madeira. O seu primeiro livro – “Azul Instantâneo” – foi lançado em dezembro de 2017 e o autor trabalha há largos meses na sua segunda edição.