Janela Poética II

Elizabeth Hazin

 

“A insustentável leveza da rosa”: Claudio Parreira

 

MORTE

 

Morte não é quando se morre apenas
quando os dias já não tornam
e a música cessa:

morte é sempre
ou de repente
é vez por outra

morre-se para tantas coisas
não só para a vida que escorre em fios
(por vezes entrelaçáveis)

também morre a palavra
se não diz o novo
se ao atingir a forma cristalizada
não a dissolve.

 

 

 

***

 

 

 

ENIGMA

 

O poema não chega à mão
quando se quer
movido pela fria
aragem do pensamento

mistura de nuvem e armadilha
tampouco nos salta do coração:
as palavras têm seu preço
e muitas vezes só nos resta
o sonho da noite anterior
fragmentado e mudo.

 

 

 

***

 

 

 

NOTURNO

 

Noites, a difícil travessia:
são manhãs escuras
compridas de silenciosas
e vazias. Vazias de tudo.
Sobretudo de sonhos
única possível alegria
em tempos de miséria.

De tanto não dormir
começo a discernir no escuro
o cinza das horas
matizes do tempo
e cavalgo a noite de pouca lua
adivinhando a cada instante
a manhã salvadora.

Acompanho no céu o percurso de Júpiter
ou dos resquícios da lua minguando sempre
e sei:
a de hoje não é a de ontem
e a de amanhã será menos
(uma ambulância rasga o espaço da rua).

Como não durmo, descubro:
as noites não são iguais
cada uma tem seu nome
e o traz no dorso
impresso
( por que não o leio?)
Do lado avesso do sono
resta-me apenas meu verso.

 

 

 

***

 

 

 

SILÊNCIO

 

Fio de silêncio o meu amor
(só o silêncio é permitido)
e aturdida escuto o eco
do silêncio mesmo – ó castigo –
reabrindo sempre a ferida
– a mesma – em que ponho o meu dedo
ó sangue esse rio corrente
em que – de medo – afogo o medo
de excluir para sempre o silêncio
com que fio o amor e desfio
as cordas que batem no peito
essa canção afogada no rio.

 

 

 

***

 

 

 

EU E BORGES

 

A cada noite
repito o gesto
de abrir os olhos
………………no sono
e – pelo avesso –
olhar e ver
– por dentro da noite –
do outro lado
o descomeço.

 

 

 

***

 

 

 

URGÊNCIA

 

sempre escrevendo
alguma coisa mentalmente
sem coragem de mergulhar a cara no papel
e me perder no emaranhado de linhas
sempre
essa vaga necessidade de escrever
(de dizer algo
terrivelmente essencial à minha vida)
jamais concretizada

preciso anotar
todas as minhas lembranças
todos os meus sonhos
todos os livros que li
todas as brincadeiras da infância
todas as receitas de minha avó
todas as luas que vi
antes que tempo e pó
tornem ilegível a página.

 

Elizabeth Hazin (Recife-PE, 1951). Publicou Poesias (1974), Verso e reverso (1980), Casa de vidro (1982), Arco-íris (1983), Espelho meu (1985), Martu (1987), O arqueiro e a lua (1994). Em 2006, a Vieira & Lent reeditou uma segunda edição — revista e ampliada — de Martu, livro vencedor do Prêmio Rio de Literatura (1986) e foi publicado Lêgo & Davinovich (7Letras) escrito a quatro mãos com Davino Sena. Em 2010, a Vieira & Lent republicou Arco-íris e em 2014 publicou Mágica de Carrosel (infantil). Atualmente é professora Associada Plena junto ao Programa de Pós-Graduação da UnB, líder do grupo de pesquisa Estudos Osmanianos.

 

 

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