Janela Poética III

Neuzamaria Kerner

 

Desenho: Fernanda Bienhachewski

 

ESCREVIVENDO

 

Escrever e viver
se misturam
quando os olhos se apuram
para ver o traçado da vida.

Que o meu sentido veja
o percurso das veias
que levam sangue e sentimento
na vida em circulação

Que eu veja e seja
percurso e veia então

Neste percurso inscrito na alma
eu me inscrevo na vida
e sigo

Escrevo

Escrever é fazer autópsia
dos vivos sentimentos
que borbulham em cada passo
veia, sentido e laço
no traço dos meus caminhos

 

 

 

***

 

 

 

VIRULÊNCIA

 

Um dia
nossos olhos se abriram
e não estávamos sós

Prosseguimos desbravando

Noutro dia
como pedras atritadas
palavras começaram um incêndio

Prosseguimos debatendo

De repente
nos vimos apartados
olhos tapados contra o sol
desabraços legislados
obrigados num exílio
que dá dó

Estamos morrendo

 

 

 

***

 

 

 

FÚRIA

 

A pior fúria é a silenciosa
A fúria disfarçada de um
Atrai a fúria oculta de outro
Nos barulhos a fúria tapa ouvidos
Nos silêncios a fúria age
Pressente oportunidades
Embaralha sentimentos
Finge felicidades
Permanece má passageira
No colo que embala a raiva.

 

 

 

***

 

 

 

SÚPLICA POR UM INCÊNDIO

 

Em verdade
nunca fui um vulcão
em permanente erupção.

Em aparência
sempre soltei labaredas de vida
para viver as necessidades.

No imo
busquei o sentido para continuar
meu sentido interior.

O que há no centro dos ossos nossos
escapa aos olhos do mundo.

Mas meus passos pararam
quando descobri que do nada
só têm saído nadas.

Uma pequena fagulha
pode reacender uma chama
e eu preciso me queimar
nem tanto nem pouco
como sempre foi.

Dá-me um fósforo, ó meu Pai!
Um pequeno incêndio
já vale uma vida.

 

 

 

***

 

 

 

SITIADOS

 

Transito na transição
mas não imune
aos vírus que enrugam minha cara

Neste trânsito que penso infindo
outros também transitam
com suas carquilhas expostas

De costas os vírus
metáforas do horror
riem discórdias
matando o espírito crítico
ou seja lá que espírito for

Na dor de onde vinda não sei
pobre cães ladram e atacam
as caravanas que passam

 

 

 

***

 

 

 

PONTUALIDADES

 

Eu me divido em minutos
o tempo em eternidades.
Eu sempre gerundiando
o tempo imperativista.
Eu vivendo de atrasos
o tempo de nunca mais.
Eu compasso de esperas
o tempo sempre passando.
Eu cheia de reticências…
o tempo de pontos finais.

 

Neuzamaria Kerner, baiana de Salvador, é professora e escritora. Tem publicados os livros: “Fragmentos de Cristal”, “Eu Bebi a Lua”, “A Presença do Mar na Prosa Grapiúna”, entre outras publicações em revistas literárias. Seu mais recente rebento poético é “O Livro-Arbítrio das Evas – Dentro e Fora do Jardim” (Ed. Editus – 2014).

 

 

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