Wilton Cardoso
Rio do esquecimento
a vida escorre pelo ralo dos relógios
no inferno de cimento e piche
gases e automóveis
os sonhos derretem no asfalto
o alto dos edifícios é um abismo
no fundo: rio do esquecimento
em brancas nuvens
cocô de cachorro pedaços de
copos plásticos folhas secas
rolando sobre a grama seca
no ar quente e seco de setembro
canteiro
no meio da avenida
o sol martela a pele manchada
a imundície dos cabelos
a cara-cadáver noias
putas mendigos (de)ambulantes
viajam as vias (s)em volta
da rodoviária
***
Haicais crepusculares
folhas secas
bailam no asfalto
ao ritmo do vento
ruído
fiel companheiro
por horas a fio
é tarde
só poentes
brotam no horizonte
***
Paisagem muda
Rua 57, C 137
O lote limpo dos detritos:
retângulo de concreto
entre três muros
e a calçada.
Quem quer se lembrar
da dor que irradia
da cápsula ao corpo,
do corpo à alma?
Do muro dos fundos
um grafite grita
a dor soterrada
no concreto do lote.
Um grafite grafa
as letras de Leide
que não vai mais andar
em nossa cidade.
Só um grafite
(arte de negros)
corta o silêncio
de concreto do lote
e desenterra a dor
(grito invisível)
dos que não têm voz.
***
A alma podre do poeta
Do lado de dentro da máscara
burocrata, um solo putrefato
gesta uma flor feia e ex-
uberante, um poeta etílico
de rosto lúcido, límpido,
barbeado e banho tomado.
Do lado de dentro uma flor
suja, um olor fétido, enraizado
na face sombria da alma e, mais
ao fundo, se afunda no lodo
podre da cidade, alma de asfalto
e cimento, vidro e plástico, corpo
atravessado de horários e cifrões.
Do lado de dentro da fantasia feliz que desfila
no carnaval do dia a dia (de patrões
e labuta, dos negócios, do gozo
cinza e furioso do consumo) se dis-
semina a onda bacante, a erva
daninha, praga sem serventia,
a poesia.
***
A noite que vem
A noite tem a cor do medo e do ódio
A noite cheira à tristeza e vingança
A noite com sangue nos olhos
é mais escura que o breu
O coração das trevas da noite
exala um hálito verde-oliva
A noite e seus campos ressequidos
na terra que definha
A noite e seu rebanho de bestas-feras
A noite dos chicotes
tangendo o rebanho ao abismo
A noite dos pastores ensandecidos
À noite
o pastoreio da morte
***
Alguma coisa
Alguém
presta atenção às folhas
na praça dançando ao vento, ao vento
que entra pela janela e acaricia
os poros, na memória lenta dos mortos,
no emaranhado de fios sobre a avenida,
no vai e vem sem sentido das formigas
humanas, às ruas do dia cheias
de carros, nas ruas vazias
da noite, à noite de luzes
e gatos da cidade, ao mendigo
que dorme na calçada, à letra
da música, em alguma
poesia?
Alguém consegue………..prestar atenção
……………………………….em alguma coisa?
Wilton Cardoso nasceu em 1971 em Morrinhos-GO. Formou-se em Jornalismo e cursou pós-graduação em Estudos Literários pela UFG. Trabalhou como programador de computadores e professor de língua portuguesa e literatura. Atualmente é servidor público do Estado de Goiás e mora em Goiânia. Além de poemas, escreve ensaios e mantém o blog pessoal O engenheiro onírico, onde disponibiliza as suas obras sob licença copyleft.