Rita Isadora Pessoa
síndrome de circe
Por baixo da face lisa e superficial das coisas, há outra que aguarda para rasgar o mundo em dois (Madeline Miller)
por trás de um rei ou governante
há sempre seus conspiradores
dentro de um cavalo………. já coube
[disseram]
a queda de uma cidade
………………………….no focinho subterrâneo de um panteão
rela,,,,,outro ………………..adormecido
………………………………….mas não vencido
…………………….e por trás de um olimpiano
há…-quem sabe-…uma titânide….com planos insondáveis
….dentro de uma horda de porcos
pode habitar uma comitiva de tripulantes
…em lenta metamorfose anacrônica
…a história se repete …..veja bem
se repete…..se repete…..se repete
….. ….. ….. ..só não se repete mais
do que os homens…..e os deuses
….. ….. ….. repetem a si mesmos
***
devagar
com o pensamento em Ana C.
troco o hímen
por um homem
como quem troca
um fonema
………..por outro
………..a pele
………..por outra
flor
escrita nas imediações
…………….das catástrofes naturais
***
prece para acelerar o fim do mundo
senhor, fazei com que eu evite a caixa. eu quero abri-la.
quero abrir, mas não posso.
penso que há qualquer coisa de luxuriante em caixas
e não sei o que fazer com as minhas mãos
senhor, que eu mantenha distância segura.
que eu mantenha as minhas mãos longe dela. da caixa.
de dentro vaza um zumbido,
como se vespas estivessem esperando
apenas uma breve oportunidade para escapar.
a caixa é quadrada e hermética,
como um experimento de Haldane.
peço que eu mantenha as minhas mãos pousadas sobre o colo.
mas, senhor,
os meus dedos passeiam pela caixa,
pela rugosidade de sua tampa, por seus sulcos e reentrâncias.
sinto que são sinais, símbolos que não compreendo.
não sei decifrar.
ela queima ao toque, a caixa.
no seu verso há uma inscrição onde lê-se:
“propriedade de pandora.
abra por sua própria conta e risco”.
senhor, fazei com que eu não abra a caixa.
sim, sei que vou abrir.
***
duas árvores
a árvore relembra …..o tropismo
primordial……do broto pela luz
como a madeira antecipa também…na lenha
a brasa …….. e o metal deseja no fogo….a forja
***
primavera autocrata politeísta apocalíptica
deixem a primavera para bandini
e para keats com seus pulmões em colapso
os girassóis para van gogh
e pelo amor dos deuses, se falarem de andorinhas
que elas sejam radioativas
………e não melancólicas
porque aqui não aceitamos mais andorinhas
e nem albatrozes brancos
……………..anacrônicos
apenas os sanguinários
homicidas.
aqui nos movemos
………..na sombra
e cultuamos
tudo aquilo que é
suavemente
…~gótico~
[e portanto
deslocado
nos trópicos]
então desliguem
os holofotes
e apreciem
aquilo que cresce e goteja
úmido entre as frestas.
***
jantar com panteras
estar com você e seus comparsas
era como jantar com panteras
a consciência
do risco
sempre presente
nos dentes faiscantes
um gesto em falso
[ um movimento abrupto ]
e o cardápio muda de direção
estar com você
como quem observa
a barba de um homem
crescer
o milagre de uma barba
a barba deste homem
despontar
ao longo do dia
e das semanas
no aprendizado de um tempo outro
[ um tempo medido na grandeza
de capilares quebrados e brotos
recém rompidos
de sementes
e afluentes
um tempo medido
na velocidade de gotas
forjando um novo estuário ]
estar com você, criatura dupla
habitante de dois mundos
o estuário….o mangue….a encruzilhada
metade homem metade cavalo
no galope compassado dos alagadiços
entre juncos cobertos de sal e mel
você me interrompe
e diz ‘ela não gosta de leite vaporizado’
é preciso que seja líquido
‘também não sou fã de expresso’
amor é quando eu o observo
do outro lado
diretamente do mundo dos mortos
a reler todos os meus livros
mesmo os digitais
memorizando
cada passagem sublinhada
criando um novo texto
no qual reconta
a história da minha morte
Rita Isadora Pessoa é uma escritora nascida no Rio de Janeiro. É Mestre em Teoria Psicanalítica (UFRJ) e doutora em Literatura Comparada (UFF). Publicou em 2016 seu primeiro livro de poemas, “A vida nos vulcões”. Foi vencedora do Prêmio Cepe Nacional de Literatura 2017, com o livro “Mulher sob a influência de um Algoritmo” e seu terceiro livro, “Madame Leviatã”, foi lançado em 2020 pelas Edições Macondo. Participou da antologia organizada por Heloísa Buarque de Hollanda, “As 29 poetas hoje” (Companhia das Letras, 2021).