Janela Poética II

Constança Guimarães

 

Arte: Zô

 

sapiens

 

um homem é preso
arrastando crânios nas ruas de belo horizonte

errantes quatro crânios humanos amarrados
numa corda de varal azul
o homem andava pelo bairro da saudade à luz do dia

no inverno mais quente da capital mineira
o homem preso em flagrante está
à disposição da justiça
os crânios
foram recolhidos
dizem os jornais

 

 

 

***

 

 

 

engrenagem

para Flávia Péret

 

ela amarela quando dia quando tarde quase noite de repente. escuro quase depois escuro total. de noite caldo grosso sono forte. azul claro ainda sono ainda leite café pão café. trabalho trabalho trabalho. mão nas costas nas cadeiras pescoço dor. ela amarela tão forte o sol muito forte mão na testa suor. de repente chuva muita água a rua cheia de poças sombrinhas guarda-chuvas. esbarrões muitos esbarrões pisões tropeções. sapato molhado fila no mercado almoço atrasado. trabalho trabalho trabalho. mão nas costas cadeira velha o chefe. tarde amarela ela tão cansaço. a rua cheia ônibus cheios pessoas cheias dessa vida. azul quase escuro ela quase forte ainda respiro sapato molhado ainda gato no telhado suspiro. todo dia todo dia. gato cinza bobo pra dentro gato pra dentro. azul escuro quase noite depois noite quase alta caldo grosso cama corpo esticado exausto sem dormir.

 

 

 

***

 

 

 

Inventário

 

parafusos franceses com porcas sextavadas, quarenta
parafusos e roscas soberbas, quarenta
soberba
dobradiça
ciúme
remova as películas de proteção
puxador com parafuso philips, quarenta
os nervos cardíacos formam um corpo neural com quarenta mil neurônios
vai me matar
a medula espinhal comanda os atos involuntários, eu obedeço
abaixo cedo sofro vergo
sistema nervoso autônomo

autômato
ele me esmurra na cara
me atira ao chão
chuta barriga pernas costas
verifique todos os componentes
eu tenho dor
parafusos franceses com porcas sextavadas, quarenta
parafusos e roscas soberbas, quarenta
roscas
aorta arritmia válvula batimento martelo

meu coração vai parar de bater
bate em média oitenta vezes por minuto
quatro vezes mais quando me assusto
eu me assusto o tempo todo.

me assusto com o ar que passa gentil, eu desconfio

tenho dor
metros de conduíte
rejunte rebite de alumínio. dejeto

eu me ajeito me ajeito não há
desisto verifique todos os componentes
prego telheiro, quarenta
parafuso atarraxante, quarenta
remova as películas de proteção
ele vai me esmurrar de novo
autômato
rejunte rebite de alumínio
rejeito

 

 

 

***

 

 

 

plantei uma cebola envelhecida

 

a descobri
no fundo da gaveta na geladeira
numa limpeza feita entre reuniões
o tempo passado
tão rápido

a cebola velha babada
no fundo da gaveta tinha raízes enormes

 

 

 

***

 

 

 

em gavetas não se morre de frio

 

moramos em gavetas
você tem razão, wislawa
gavetas com divisórias
mas veja há teto
e o vento circula quando deixamos
as janelas abertas
também há banheiros
e podemos nos limpar
morei em espaços
de engenharia primária
ou negligenciada
construções planejadas
por quem nunca habitaria
um quadrado de poucos
metros divididos

em quadrados menores
de tamanhos diferentes
ali também havia teto
e banheiro e janelas
que eram fechadas no frio

um lar com sol e afeto
encanamento e telefone
hoje o quadrado é um pouco maior
com recortes internos mais ou menos diversos
uma gaveta divertida em família
que chamo lar e assim ele se faz
caixas de papelão
não são gavetas
cobertores rotos
tampouco salvam
o sol quando vem
não é belo queima

 

 

 

***

 

 

 

dulce veiga meu bem, fala comigo

para as mulheres que eu amo

 

ninguém contou para o sol
que hoje é sábado e não vale a pena
queimar o quarto a tarde toda
estou empenhada em não arder mais

por enquanto
deixei o pó nos móveis
o chão todo marcado
roupa de cama na máquina
fiquei de pijama velho
aquele que não usava mais
com medo de ser internada

 

 

Escritora mineira e jornalista, Constança Guimarães lançou em 2024 ”Não quero morrer enquanto durmo” (editora Urutau).  Autora dos livros “Como se fosse possível medir o tamanho do escuro”, (Urutau, 2020), “Ombros caídos olhando para o inferno” (Urutau, 2017) e “A sereia da contorno e outras histórias” (Leme, 2017). É coautora de “Aleatórias” (plaquete ilustrada por Sofia Nabuco, Leme, 2022). Tem poemas e contos em revistas como Rascunho, Gueto (especiais Utopia/Distopia e Crianças em Guerra), Diversos Afins, Ruído Manifesto, Acrobata, Mirada, Germina e Laudelinas. Participa da antologia “Não há nada mais parecido a um fascista que um burguês assustado” (Hecatombe/2020).

 

 

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