Raquel Gaio
um desconhecido que me fala ao pé da noite,
possui entre os dentes
a calmaria de um rio.
em meus sonhos agudos,
sorve como um ventre
os esqueletos decadentes
e translúcidos de minha confissão.
(visões de um deserto que ninguém pressente)
esse sonho
transe alucinatório e místico
onde perco a dormência e o verbo,
nos inventa sem falta
sem desonra.
alegria cobiçada por Deus.
salto com violinos à beira-mar.
a fala desse desconhecido
se debruça sobre meu piano mudo,
e a cada nota costurada à goela,
desmancha qualquer pudor
qualquer lábio e cabelo
sem desastre
e escuridão.
reflexos da manhã
tudo nele é nada
gema de destroços
espinha de peixe
vastidão.
através de sua música onírica,
decomponho-me surrealisticamente.
/porque há um estrangeiro que me habita todas as noites
como uma avenca em perpétuas ilusões/
***
costurar na minha virilha
nosso enlace.
apertá-lo com as pernas nas noites
prenhas e insones.
(encontro frutífero de terrenos baldios-
benção de um deus que não reza.)
***
perpetuar homicídios
abater andorinhas
e retirar de cada mamilo o pouso.
as feridas continuam a se mover em círculos, você não vê?
o adorno dos corpos diz o destino
diz a escama escura e perpétua?
uma matilha de cães te ensaboando as vísceras
e no meio da guerra compartilhando a romã da madrugada.
um explícito exu encosta em meu hálito,
e fecundo o chão grávido de nada.
(o chão me exige uma paternidade que não posso dar)
desejos de fim de ano
derramando o café
substituindo a borra pela combustão.
/eu tenho um relâmpago nas mãos e uma fratura na boca/
estou vendendo o tempo que esse poema consumiu pra ser feito,
quanto você pagaria?
***
um poema me começa
e invade minha saudade inventada.
tenho um sonâmbulo amor
e as costelas lúcidas da madrugada.
– sei que isso já foi escrito em algum lugar-
sou plagiadora desde nascença.
imito paraísos e tonturas.
tenho correspondências não lidas
que ocupam toda a mesa de jantar.
– ando preferindo ser horizontal e mística.
encerro esperanças na vodka
e minha sede se derrama pela noite.
cem estilhaços me dão a mão,
e no verão,
tenho contrações
devido ao número excessivo de verbos.
qual a palavra/gesto que costura
um abcesso?
observações pertinentes a esse plágio:
não possuo óculos escuros
e antes de sair de casa,
esqueço de tirar os soluços do bolso.
(Raquel Gaio nasceu na cidade do Rio de Janeiro, é atriz, poeta e performer. Cursa o último período da Faculdade de Letras da UFRJ. No ano de 2011, lançou o livro de poesias “O Exercício no Mundo” com Luis Alexandre Louzada e Denise Fraga. Foi publicada nas revistas Um Conto, Diversos Afins, Estrelas Vagabundas e Zebra, estas duas últimas da UFRJ. Suas performances, algumas delas, são derivadas de suas poesias como “Retina” e “poemas vermelhos”. Mantém o blog Sensação de Violeta, onde publica suas poesias e algumas imagens de seus trabalhos)
foda. amo essa poeta
Raquel Gaio se destaca com textos e imagens marcantes. É preciso estar atento!
É isso, é preciso de fato estar atento às imagens utilizadas pela Raquel, como diz o Luiz, pois é através delas que o sujeito atribui aos signos potencialidades que ultrapassam o sentido primeiro da percepção imediata das coisas. Porque não são poemas eufóricos, é que se faz necessária atenção redobrada na leitura. Parabéns pelos poemas e pela prosa curta, enxuta, carregada de sentido.
Abraços,
Belo achado: “benção de um deus que não reza”
Parabéns pelos poemas!